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05/07/2022 às 08h00min - Atualizada em 05/07/2022 às 08h00min

A cisma da língua de Tom Zé

ENZO BANZO
Foto: Divulgação
Tom Zé, 85 anos, acaba de lançar disco novo. Tom Zé sempre tem o que dizer, pensar, cantar, tocar. O faz por sua música. Ouvi com empolgação o novo álbum. Cada ouvinte tem sua história com os compositores-intérpretes que ama: a minha com Tom Zé é das que mais gosto. Mesmo ouvindo canções novas, na minha audição pessoal, ouvir Tom Zé é sempre revisitar a graça de uma personalidade vocal capaz de me deslocar para a infância.

Conto os porquês: quando eu era menino lá na Ibiá dos anos 1980, colecionávamos uma série de disquinhos com historinhas, a “Taba”. Não sei como, mas chegava lá todo mês um livreto novo com vinil compacto, e cada edição era embalada pela trilha de algum Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo. Eu amava todas, mas uma acima de qualquer outra: “Malaquias, o macaco cismado”, que além de ser cantada por Tom Zé, tinha seu protagonista interpretado pelo baiano de Irará. Em plena década do maior ostracismo do compositor, lá em casa ele era hit. Eu só conhecia sua imagem pela capa do disco, mas reconhecia profundamente a sua voz: seu jeito singular de dizer e cantar a própria língua. Até hoje, sempre que ouço Tom Zé, de alguma maneira estou ouvindo aquele inquieto e cismado Malaquias.

A personagem ficou ali um tempo esquecida na infância. Em meados dos anos 1990, já redimido pelo talking head David Byrne, Tom Zé fez um show em Uberlândia, no Teatro Rondon Pacheco: não estava lotado, mas tinha muitas mentes inquietas. Eu não fui, nem fiquei sabendo. O impacto do show, entretanto, não se limitou a quem estava lá. Chegou, por exemplo, até mim. Lembro do disco “The hips of tradition” (1992) circulando com o autógrafo do artista que, redescoberto pelo estrangeiro, ironicamente assinava: “Tom Zi”. Ouvi esse álbum incontáveis vezes, e fui descobrindo a discografia, alguém tinha um vinil aqui, outra pessoa tinha um CD ali. Tom Zé era, e ainda é, o cara. Na minha primeira banda em Uberlândia, o Tulane, abríamos o show com “Ogodô ano 2000”, faixa 1 do “The hips”. Na nossa Porcas Borboletas, o gosto pelos riffs, que até hoje cultivamos, vem menos do rock gringo, e mais de Tom Zé, aliado a Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Patife Band. 

Em toda essa trajetória, nunca deixei de identificar em Tom Zé o cismado Malaquias.  Tom Zé é um sujeito cismado: com o Brasil, com a história, com a música. Parece-me decorrer de suas cismas a sua série de discos conceituais, cujas faixas funcionam como ensaios em torno de uma ideia central. Esse núcleo parece ser sempre o Brasil, desdobrado em novas cismas: cismou com o samba, fez “Estudando o samba” (1976); cismou com nossos defeitos-qualidades, lançou “Com defeito de fabricação” (1998); cismou com a Tropicália, veio “Tropicália lixo lógico” (2012); e agora cismou com o que sempre viveu cismado, a nossa língua particular falada no Brasil, e veio “Língua brasileira” (2022), lançada pelo Selo Sesc em junho, com repertório apresentado, inicialmente, em peça de teatro, encenada no começo desse ano de centenário da Semana de Arte Moderna.

Ponto fundamental: essa língua é pensada e praticada por Tom Zé como matéria sonora, entre a fala e o canto; ao mesmo tempo em que discorre, ele é a própria língua, ao cantá-la. Na escrita, podemos até pensar que é quase a mesma língua do Brasil e de Portugal. Mas a sonoridade evidencia as singularidades, e Tom Zé, criativo pesquisador cismado, investiga a fundo esse nosso ser de som, como aponta no texto de apresentação do álbum: “nós nos orgulhamos da língua cantabile melodiosa que falamos no Brasil. As averiguações mostram que herdamos isso de uma antiga língua africana e negra: o quimbundo. Falamos, com pouso nas vogais, uma língua quase cantada, em vez daquelas consoantes acentuadas preferidas em Portugal”.

Tom Zé adora brincar com os sons dessa nossa língua cantada, misturada, entre o indígena e o africano, até o inglês dos que o redescobriram. E sabe que a canção popular é matéria central por onde pulsa e ecoa essa língua, irradiando-se pelo mundo (lembremo-nos de João Gilberto cantando para a plateia silenciosa do Japão). Não por acaso, a faixa-título assim termina: “em nossas terras continentais / a cartomante abre o baralho, /abismada vê, entre o sim e o não, / nosso destino ou um samba-canção”. É pura música essa língua brasileira, nova-velha cisma de Tom Zé. O baiano, de tanto cismar, alcança a raiz da árvore e o alto do galho no céu. De suas cismas, nos revela o Brasil, nos revela a nós mesmos. 


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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