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30/06/2022 às 08h00min - Atualizada em 30/06/2022 às 08h00min

Pratos esmaltados

IVONE ASSIS
Nesta semana, uma amiga muito querida telefonou dizendo: “Tem tempo para ir comigo escolher um vestido?” Ora, que amiga recusaria um convite desses? Amizade vale mais que ouro, portanto, de pronto, assenti que sim. Entre risos e casos, fomos relembrando histórias, experimentando roupas, e rindo-nos dos episódios em que as vendedoras só sonhavam com o descanso ao final do dia. Por fim, o vestido apareceu diante de nós, implorando àquele corpo que o levasse consigo. Foi amor à primeira vista. Isso me lembrou o filósofo italiano Cicero (106aC. – 43 aC), cujo capítulo VI, da obra “Diálogo sobre a Amizade”, se inicia com a frase “A amizade é uma suma harmonia nas coisas divinas e humanas, com benevolência e amor. Dons tão grandes, que não sei se os deuses concederam (exceto a sabedoria), outro maior aos mortais. [...] E assim discorrem nobremente os que constituem o sumo bem na Virtude e [...] sem ela, não pode existir amizade de modo nenhum. Interpretemos, pois, a virtude, como costumamos entendê-la, pelo uso comum da vida e não [...] por certa magnificência de palavras”.

Citação propícia para descrever a obra “Terra, traçados e livros: nas vozes da memória”, da escritora brasileira Enivalda Nunes de Freitas. O livro é uma retomada de memórias, coladas pelos laços familiares e costuradas pela amizade. A capa dessa história tem como verniz UV a saudade e, sem dúvida, o papel no qual foi impressa é o papel da Virtude.

Como escrevera Norma Píngaro, em sua obra “La creación literária...” (2007, p. 18): “Na solidão de uma habitação, ou numa mesa de café, um homem escreve suas frases, tenta sair do real [...], recorre à dor de suas perdas, detendo-se nas palavras escritas, reitera seu lugar no universo como sujeito”.

Ao adentrar “Terra, traçados e livros”, as vozes da memória vão se falando, todas ao mesmo tempo. Impossível não se emocionar, não rir alto, de vez em quando. O leitor parece ouvir o som do arco de pua, que roça a madeira; ali, à página 29, vamos contemplando o pai, com suas mãos furadas pelo arame farpado (das cercas que fazia), a ler a bíblia e, assim, a seu modo, ele vai deixando seu legado de leitor e de resiliência. Um tamborete velho arrasta a memória de uma família goiana, que, por amar a vida e o progresso, não aceitava o descaso do governo para com a população invisível, as conhecidas “famílias mais humildes...” A mãe, mulher além de seu tempo, colocou seus rebentos no mundo, vestiu a coragem, agarrou o giz e vacinou os filhos contra a ignorância. Aldacira, a filha de dona Geralda e de seu Vigilato, enriqueceu seus filhos de saberes. Mostrou a eles que as arestas do arame farpado servem para proteger o jardim florido. Os espaços foram ancorando aprendizados e sonhos: Córrego do Ouro, Moiporá, Diorama, Iporá e, por fim, a tão sonhada Goiânia. A capital menina, agora, estava na palma das mãos, era um Jardim, das Américas.

A Brasília branca, da página 73, “que saía da garagem, no Jardim América, para deixar uns no Setor Universitário e outros na Praça Cívica”, era uma sobrevivente a tanto corre-corre, mas também fazia parte daquela conquista, cuja riqueza intelectual estaria incrustada na vida de cada um que depositava seus sonhos na coragem daquela Reia da casa, aquela mãe frenética, ora enérgica, ora só doçura. A pequena Tainara, quando enciumada da avó, “afasta a pontinha de seu travesseiro que encostava no travesseiro da ‘traidora’”, e ficava a aguardar a reconciliação da avó, com algum afago.

Aquela mãe e avó, muitas vezes, utilizou a pedagogia do amor, regida pela batuta da goiabeira, verdinha, inquebrável, para levar conhecimento e disciplina às cabecinhas espertas das crianças. A meninada se movia ao “som da orquestra”. Sim, os filhos, em quem ela tanto acreditou, colocaram cabresto nas palavras e galoparam, livremente, em busca de suas conquistas. Venceram, como a mãe queria. Ou até melhor. E futuro pôde sancionar aquela história, que fora servida em pratos esmaltados.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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