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16/06/2022 às 08h00min - Atualizada em 16/06/2022 às 08h00min

Plantação de Abóboras

IVONE ASSIS
Enquanto lia “Cândido, ou O Otimismo”, do escritor francês Voltaire, na discussão sobre a palavra “mas”, deparei-me com a frase “Isso está bem falado […] mas é preciso cultivar o nosso jardim” (capítulo 30). O jardim é o que existe por baixo e além das nossas palavras; e até a filosofia é bem-vinda no jardim, contanto que não queira [...] estorvar o trabalho, o cultivo ativo da terra. Cultivar o jardim não é simplesmente cuidar da própria vida, [...] é decidir não procurar respostas a perguntas que não as têm”.

Nesse momento, lembrei-me da obra “O plantador de abóboras”, do escritor timorense Luís Cardoso, que venceu o prêmio Oceanos 2021. Nela, Cardoso escreve: “Mãos. Não tenho memória das tuas mãos. Não sei quem sejas. Não sei donde vens. Não sei quem eras antes de entrares nesta casa para me dizeres que gostarias de plantar abóboras. Semeiam-se abóboras. Deitam‑se as sementes à terra e que delas nasçam plantas. Em Manu‑mutin chove todo o ano. Tanto que até chove dentro de mim. Vivemos debaixo de um chuveiro [...]. Plantamos durante o ano inteiro; plantas, pedras, animais, casas e pessoas. Também abóboras. Planto‑me nesta cadeira de lona a ouvir o grasnar de um ganso, apesar de desaparecido há tanto tempo, ainda se pode escutar a sua voz, nesta varanda”.

Luís Cardoso, certa vez, em entrevista, disse que a sonata que ele carrega em sua memória é das vozes femininas que ocupam sua mente, de quando, trabalhando em sua meninice, e de quando vivenciando a guerra, ouvia as mulheres a lhe ensinar, a ler, a entoar canções... Elas eram a resistência. Plantavam esperança. Agora, na prosa poética impregnada em “O plantador de abóboras”, o autor parece revolver a terra e extrair todas suas reminiscências envoltas de memória e tragédia. O autor cria um eu lírico feminino, para dar voz aos emudecidos, ao passo em que vai narrando a história de seu país, criado em meio a violências como racismo, exploração, machismo e outras barbáries. Cardoso mapeia sua própria territorialidade, criando uma geografia ficcional ocupada por problemas reais, como se alinhavam políticas, lendas, afrontas e resistência.

Luís Cardoso abriu o placar da literatura timorense no quesito premiações, mas não se trata de uma produção isolada. Esse escritor já é autor de outras obras, e já vem sendo estudado nas academias faz tempo. Sua inteligência e sua intelectualidade o mantiveram firmes no propósito de narrar a história, com seus marcos de violência, sem perder a poesia, a leveza da palavra, para assim produzir, com destreza e habilidade uma narrativa única, e sua, para representar um povo, uma nação, o Timor-Leste. Escreveu mais o autor, dizendo: “Nunca precisei de sorrir fosse a quem fosse. Tenho o rosto que sempre quis. Não foram as circunstâncias que o moldaram. Moldei­o com as minhas próprias mãos. Foi com ele que enfrentei, sem nenhuma máscara, a multidão...”.

Havemos de plantar abóboras? Por certo, sim, porque a terra está sempre pronta para receber novos plantios, a fim de florescer na estação certa e dar bons frutos, para propiciar mesas fartas de política saudável e consciente, de mentes questionadoras e livres. A palavra é a adubação de um plantio promissor, capaz de levantar nações. Tal como a abóbora, o bem-viver (a esperança, o progresso) de uma nação pode ser cultivado depositando as sementes diretamente no solo ou cultivando mudas. Ora, para que a plantação se mantenha saudável faz-se necessário manter o equilíbrio da umidade do solo, nem seco, nem alagado, simplesmente, úmido, para que as abóboras cresçam fortes e independentes. Imaginemos a nação como uma aboboreira, nem seca, nem alagada, porque os excessos são prejudiciais, portanto, que tenha o necessário para se estruturar (educação, saúde, oportunidade, segurança, justiça... e liberdade), para que possa crescer forte, saudável e com autonomia, como se fosse uma Plantação de Abóboras.

*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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