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09/06/2022 às 08h00min - Atualizada em 09/06/2022 às 08h00min

A casa

IVONE ASSIS
Outro dia, os caminhos da vida me propiciaram a alegria de uma longa conversa com um amigo querido, um poeta e promotor cultural da cidade de Maputo, que fica no país de Moçambique. Estou a falar do escritor Amosse Mucavele, autor de “Pedagogia da ausência”, 2020, cuja obra se abre informando que se trata de um Seminário sobre Lugares. Já nas primeiras páginas encontramos uma epígrafe da obra “Fervor de Buenos Aires”, 1923 – primeiro livro publicado de Jorge Luis Borges –, quando este tinha apenas 24 anos de idade. Trata-se dos três últimos versos do poema “Cercanías”, que diz: “He nombrado los sítios / donde se desparrama la ternura / y estoy solo y conmigo” [Nomeei lugares / onde se esparra a ternura / e estou só e comigo]. Possivelmente, Borges escrevera pensando na construção de um autorretrato de uma cidade em transição, como se substanciasse o próprio “eu”, em constante mutação, por meio da palavra. É nessa percepção do espaço e do caminho percorrido, em que o caminhante se depara com seus silêncios e solidão, em um revirar escombros da memória, que Mucavele se pauta, igualmente, com sua construção poética, profundamente entranhada na memória de si, e dos seus, dando voz à sua construção, em seu todo. É como se o poeta buscasse navegar em sua existência em busca de preencher as lacunas de um ontem de silêncios.

Mucavele escreve em seu poema primeiro, “A casa”: “Retomo a infância, com a memória que habita a casa que me devolveu à luz na sala, ergo o corpo do coração, quando tudo arde, e quando tudo arde, prolongo a polifonia das estórias, contadas em noites onde jaz a saudade. Meus avós tinham cabelos brancos, a derramarem, em ruínas da minha presença, um rio interminável, a luzir no madrigal cântico dos pássaros. Meus avós tinham os olhos de cor nutritiva, perenes nos sulcos do tempo, a soar no tabuleiro da alegria”. (MUCAVELE, 2020, p. 9).

Assim, o poeta vai tecendo suas histórias, dando harmonia aos próprios pensamentos, aos seus vazios e indagações, como se buscasse gerar um contraponto entre seu ontem e hoje, para que sua saudade não se acabe em um simples rememorar, mas, sim, que se multiplique em respostas para si e para a sociedade. Ao ler o verso “Meus avós tinham os olhos de cor nutritiva, perenes nos sulcos do tempo, a soar no tabuleiro da alegria”, podemos dizer que o poema é, também, uma voz que se levanta a enaltecer aqueles que o tempo já levou, contudo, antes, estes ensinaram ao poeta a doçura de se viver, sem perder a esperança. É como se dissessem: ‘a vida é um rio que corre livre, escolhendo seu veio, usufruindo do canto dos pássaros, da luz do Sol... não pare nunca’.

Nesse poetizar, Mucavele vai dando uma nomenclatura às paredes de sua existência, por meio da casa na qual habita sua saudade e seus questionamentos. O poeta adentra os labirintos do pensamento, apoiado nos fios do imaginário e da memória esculpida na casa, que podemos ler como “existência”, para, assim, dar vida à sua poesia.

A criação poética de Mucavele trouxe-me à lembrança a obra “A poética do espaço”, de Gaston Bachelard, o qual, à página 184, escreve: “Dizer que a imagem poética escapa à causalidade é, sem dúvida, uma declaração que tem gravidade. Mas as causas alegadas pelo psicólogo e pelo psicanalista não podem jamais explicar bem o caráter realmente inesperado da imagem nova, como também não explicam a adesão que ela suscita numa alma estranha ao processo de sua criação. O poeta não me confia o passado de sua imagem e, no entanto, sua imagem se enraíza, de imediato, em mim. A comunicabilidade de uma imagem singular é um fato de grande significação ontológica”, ou seja, o poeta imprime sua reflexão sobre o ser, por meio da palavra versificada. Este é o seu modo de “normalizar” seu eu, ressignificando a existência. Mas não a existência da humanidade, e sim, a própria existência de si, isto é, a Casa.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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