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02/06/2022 às 08h00min - Atualizada em 02/06/2022 às 08h00min

Melhores jardinagens

IVONE ASSIS
Lendo sobre a boa ação do pai de uma engenheira, o qual construiu um banheiro móvel para dar dignidade humana a moradores de rua de Belo Horizonte, li o depoimento de alguém que escreveu uma “tese”, informando o espaço mantido pelo município, para o mesmo fim. Tive a impressão de que dizia: “Só não toma banho quem não quer”, talvez não, talvez estivesse a dizer que naquele lugar outro também é possível encontrar apoio. O fato é que o banheiro móvel, com água quente, construído pelo morador belo-horizontino, leva o banho até o morador de rua, e não o contrário. Afinal, a cidade é grande, e quem mora do lado “norte” não sairá em busca de banho no lado “sul”. As duas ações são de muito valor, e uma não ofusca o brilho da outra.

Quanto mais ações, mais dignidade. Quanto mais jardins, mais flores. Da ação citada, além da cabine de banho, o evento conta ainda com o acolhimento humano, repassado por meio de um sorriso largo, um sabonete, uma roupa limpa e um chocolate. Ações assim nos fazem crer que ainda existem jardineiros nesta vida.

Esse episódio me remeteu a duas literaturas: o conto “O campo de croqué da Rainha”, publicado em “As aventuras de Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, e o conto “Plástico”, de Durval Baranowske, publicado em seu livro “À janela”.

No primeiro, uma grande roseira que cresce junto à entrada do jardim real tem suas flores pintadas por três jardineiros, os quais cometeram um engano plantando flores brancas em vez de vermelhas, e esse tipo de erro tinha como punição a decapitação dos “culpados”. Na verdade, trata-se de um jogo de cartas, mas o que é o julgamento senão um jogo? Os três jardineiros: Cinco, Sete e Dois tentam repassar a culpa, mas no final, conseguem salvar suas cabeças, pela política de Alice.

Já o segundo conto, de Baranowske, um autarca – possivelmente um rei – contrata três jardineiros para dar beleza à cidade, por meio de jardins, com flores e plantas adequadas à expectativa. Dois deles são fiéis ao autarca, pela confiança depositada neles, e cumprem seu papel com maestria. Mas o terceiro, além de desonrar a confiança que lhe foi concedida, ainda é capaz de cuspir todo o seu rancor ao contratante, dizendo-lhe, arrogantemente: “Não fiz nada! Não gosto de jardins. Não nasci para limpar florestas, nem para plantar flores...” e entre muitos desagravos concluiu: “Cuidar de um jardim é inútil”. Então, sugeriu que fossem plantadas flores de plástico, que se desse o rio aos capitalistas e entregasse animais e mendigos à adoção. O autarca entristeceu-se, por ver que ali havia uma fruta estragada, mas, com sua sabedoria, pediu ao primeiro jardineiro que reconstruísse o lugar e determinou que o pragmático jardineiro da artificialidade fosse viver sua praticidade em outro município, um lugar que fosse tão insensível (ou estúpido) quanto ele. Desse modo, poderia trabalhar, livremente, em fábricas de plásticos, ao lado de iguais.

Afinal, o plástico é mesmo mais pragmático, no entanto, antes do pragmatismo, o meio ambiente e o ser humano precisam mesmo é de vida. O colorido das plantas, o cheiro da natureza, a força da terra... Do contrário, nada faz sentido.

Poderíamos analisar os três jardineiros pensando na parábola dos talentos, mas, nesse caso, vou ilustrar com a retomada do homem que construiu o banheiro móvel. Ele fez o seu possível, para fazer florescer o jardim da vida de muitas pessoas sem expectativas. Revolveu a terra, adubou os canteiros, fez florescer, cada jardim com seu encanto, exposto por meio de um sorriso de gratidão e certeza de dignidade, pelo menos naquele quesito. Este não foi o primeiro banheiro móvel, e espero que também não seja o último, porque os jardins precisam de constante manutenção, e são jardineiros como este pai que fazem as melhores jardinagens.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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