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05/04/2022 às 08h00min - Atualizada em 05/04/2022 às 08h00min

Robson Camilo: um poeta nas veias da cidade

ENZO BANZO
Ilustração: Divulgação
O sangue corre nas veias do poeta, o poeta ronda os cantos da cidade. O sangue em movimento é seu corpo. Sua poesia, seu sangue. As ruas são as veias da cidade, nelas correm toda a gente em volta de alguma ocupação. Mas a ocupação do poeta é ser o próprio sangue das veias das ruas. Delas brotam seu corpo, seu poema. O poeta metamorfoseia-se nas ruas, as ruas são ele próprio. No corpo de sua voz, quer traduzir-se, traduzir as veias da cidade em nova forma: seu poema. As palavras soam, as palavras somem, as palavras faltam. Na falta sem fim, nunca cessa a busca do poeta. Vibra todo seu corpo, sua alma, seu sangue, sua voz, suas palavras. O poeta cava um rio entre as ruas da cidade. Nos oferece a água. Sua poesia é seu suor e sumo.
 
Esse poeta tem nome, eu o vi vagar pelas ruas da cidade. É Robson Camilo. É o Robson Poeta: ouviu alguém bater aí no seu portão? Pois eu ouvi, bem aqui, na porta de casa. Mas quem atendeu a campainha não fui eu, foi minha mãe, dona Cleusa Bernardes, a poeta.  E a campainha tocou muitas vezes, e a cada toque era uma longa conversa entre os dois, e depois sempre aparecia um novo livrinho artesanal sobre o móvel da sala: colorido à mão, com desenhos e poemas, e eu já reconhecia o nome do poeta, o amigo de minha mãe. Entra Robson, a casa é sua.
 
Eu o vi daqui, um ponto entre as veias da cidade. E o grande mestre Jeremias Brasileiro, também o notou, em outro, como conta: “Eu o vi chegar aos bares do bairro em que moro com seus poemas a tiracolo e enfrentar por vezes uma recepção de olhares atentos que ocorre quando um negro se aproxima, olhares desconfiados, que logo após tomados de estranheza, percebem que ele traz impregnado em sua pele, o seu marcador simbólico permeado de àsé vivente”. E completa: “E assim traduz em seus versos as belezas, as durezas e cruezas de uma cidade que poucos veem”.
 
Depois de 17 anos rodeando os cantos com sua voz e seus livros artesanais, Robson Camilo publicou, enfim, seu primeiro livro impresso em gráfica, lançado por uma editora, com apoio de um importante programa de incentivo à cultura, o PMIC. A obra nomeia-se pelo que deixa de dizer e estar sempre a ser dito: “Palavras Q T Faltei” (Editora Subsolo, 2021). É uma referência às palavras que não chegaram a ser ditas para a avó, homenageada na ilustração da capa, saudação e benção à ancestralidade espiritual e afetiva. Mas também são as palavras que sempre faltam e que, por faltarem, impulsionam as pernas, o corpo, o sangue e a voz do poeta em sua busca.
 
No livro, Jeremias escreveu o posfácio, aqui citado. Dona Cleusa, o prefácio, em que nos adverte: “O que temos em mãos não é um livro singelo. Não é um livro simples. De modo algum é um livro fácil”. Entre o “amor rasgado” e os “gritos de revolta e protesto”, a escritora reconhece seu par de ofício: “Robson entende como ninguém a magia das palavras, o jogo musical das sílabas, o apelo vivo das ilustrações”. Robson Camilo conhece a matéria em que molda sua arte, a substância corrente do pulsar das veias, seus sons, batidas; suas dores e seus brinquedos.
 
E que aqui não faltem as palavras de Robson. É ele quem nos convoca, no poema de abertura de seu livro: “Traga seu souvenir, seu til / Aquele adorno vil, seu enfeite / Seus dentes de leite, fuzil... / Sem guerra Brasil, só deleite”. E prosseguem em sua “Resiliência poética”: “Vamos dar um basta nas pastas / Cheias de represálias”.  Resiliência construída no labor das palavras, sua labuta: “Tec. tec. tec... etc tec / E a cada letra / A máquina em rec / Registra e soletra / Páginas e páginas / O perfil lírico do poeta”.

Em sua caminhada incessante, esse perfil lírico sabe que nem sempre ganhará uma curtida; pelo contrário, poderá soar o comentário abjeto que o despreza: “Hoje ouvi / Que sou neguin / E que não presto / Hoje senti / No meu carmesim / O sangue, protesto”. O cansaço também a ele se apresentará: “Não aguento a hipocrisia democrática dos ternos”. Mas a resiliência é seu emblema, a palavra que toma como lema, a força de seu braço segurando o leme: “Quero andar de boné... / De pé com minhas tranças ao vento”.
 
E no seu sangue, sua falta, sua caminhada cheia de durezas, Robson sabe contemplar e construir o seu lirismo. E alcança o que está oculto e presente, aquilo que nos move, nos escapa, e por isso continuamos a buscar: “Eu esperava o amor pela janela / E já nela ele me esperava, / Entre a cortina amarela / À minha espera já estava”.



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
                  
 
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