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24/03/2022 às 08h00min - Atualizada em 24/03/2022 às 08h00min

A poesia ficou

IVONE ASSIS
Nesse 2022 a Semana de Arte Moderna completa um século, e esta semana existiu graças àqueles que marcaram a história há cem anos, com suas telas, suas músicas, sua literatura. Guilherme de Almeida foi uma dessas referências. Diferentemente de hoje, em que qualquer pessoa pode ter acesso aos livros, eu sou de um tempo que ter acesso aos livros, em casa, em meio a pessoas da classe social a que eu pertencia era algo, no mínimo, inimaginável. O nosso recurso era ler em dupla, em sala de aula, o livro emprestado pelo professor; e, já no colégio, ler os livros da biblioteca da escola. Desse modo, tão logo eu consegui comprar meu primeiro livro, em um difícil processo de preencher o formulário e postar nos Correios e aguardar durante muitos dias, eu estreei minha “biblioteca” com o livro “Meus versos mais queridos”, de Guilherme de Almeida. Jamais vi poesia mais linda. Ainda me lembro da capa daquele livro de bolso, verde com o desenho de uma flor. Abrir o mundo da poesia com esse escritor, por meio de sua lírica trovadoresca, romântica, humanista, moderna e pós-moderna, foi intenso demais. O silêncio da dor se convertia no grito da humanidade. Ali eu descobri o que era Soneto, Haikai, Poesia, rima, recital, jogral... Enfim, o mundo da palavra se abrira para mim, e mais, veio aplaudindo-me, pela minha curiosidade em adentrar o livro. Como eu poderia saber que ali dentro daquele montinho de páginas existisse um Universo?

Ao ler “Humorismo”, do poeta citado, que diz: “Sossego macio da tarde. / Um sol cansado / passa pelo rosto suado / uma nuvenzinha alva como um lenço / para enxugar as primeiras estrelas. / Silêncio. // E o sol vai caminhando sobre os montes tranquilos / vai cochilando. E de repente / tropeça e cai redondamente / sob a pateada dos sapos e a vaia dos grilos” (ALMEIDA), aquela poesia de rima entrecortada no início, e última estrofe na mais perfeita combinação, fez-me “plantar-me de pé”, à porta daquela casa humilde, de uma Vila pouco esperançada, à época, e ficar mirando o pôr-do-sol, até que ele se escondesse, por completo, e o matagal que se abria, à frente daquela casa da última rua, soltasse todos grilos e sapos, com seu alvoroço, anunciando que a noite chegara. Meus olhos de criança pousaram sobre o anoitecer, por longas horas, acompanhando o vagalume tum-tum, e de quando em vez as meninas de meus olhos se espichavam no breu da rua de terra que vinha da cidade, para ver se minha mãe já apontava no escuro. Geralmente, não aguentava firmar as pálpebras, então dormia antes que ela chegasse, porque aquele sol cansado, do poeta, todos os dias passava pelo rosto suado de minha mãe, mas a nuvenzinha alva esquecia o lenço, para enxugar aquela que era a minha Estrela. Assim sendo, ela continuava a trabalhar sob a luz da lua, como Estrela que era, brilhando em minha vida.

Um dia, Guilherme de Almeida apresentou o jogral àquela menina feia, de chinelo no pé. E o tal jogral fez a professora, pela primeira vez, enxergar a menina que recitava. Aquela mesma menina, que sempre trajava roupas rotas, agora era igual aos outros. A poesia do poeta modernista nos alinhavou na palavra. Brotou minha primeira apresentação no colégio. Era o final do quinto ano, e aqueles meninos ainda eram desconhecidos meus, mas é incrível como o palco é capaz de iluminar até as pulgas mais escondidas. O silêncio se rasgou de alto abaixo, e a pateada dos sapos foi trocada pelos aplausos daqueles espectadores. Minha mãe ficaria orgulhosa de mim, acaso pudesse ter ido lá, mas o sustento da casa não podia esperar. Que pena eu tinha daquela mulher tão jovem e bonita.

Almeida, em seu “Soneto XXXII”, diz: “Quando a chuva cessava e um vento fino franzia a tarde tímida e lavada, eu saía a brincar, pela calçada, nos meus tempos felizes de menino. Fazia, de papel, toda uma armada; e, estendendo meu braço pequenino, eu soltava os barquinhos, sem destino, ao longo das sarjetas, na enxurrada [...]”, meus barquinhos se foram, a poesia ficou.


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