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03/03/2022 às 08h00min - Atualizada em 03/03/2022 às 08h00min

O saber

IVONE ASSIS
Enquanto vejo a destruição nas cidades da Ucrânia, construções, carros, torres e homens, todos por terra, e um povo que não se rende, que não se entrega ao ataque desregrado de seu país vizinho, fico a pensar no touro apanhado. Uma coisa é bater em um touro pela primeira vez, outra coisa é bater neste touro pela segunda vez. O touro estará atento, e estando ele já em alerta, irá revidar. Da primeira vez, na década de 1930, Stalin, durante o Holodomor, assassinou de fome cerca de 6 milhões de ucranianos, durante o seu regime comunista soviético. Eram milhares de pessoas mortas em calçadas ou qualquer lugar, porque se arrastavam até onde as forças permitiam, e ali caíam, morriam e eram consumidas pelo tempo, ninguém tinha forças para enterrar ninguém. Todo e qualquer grão havia sido sequestrado pelo governo stalinista. A história, os registros, as fotografias, a poesia... se esforçam para que essa sandice, esse genocídio, jamais se apague na história. Agora, em pleno 2022, ou seja, nove décadas depois, a presa volta a ser atacada. Mas o touro está em estado de alerta, e revida com o coice. Não basta. Ele chifra. Pode ser que o agressor o mate, mas não importa, ele vai resistir e vai contra-atacar enquanto tiver forças. Bravura? Idiotice? Loucura? Heroísmo? Creio que nada disso. Trata-se de instinto de sobrevivência. Amor à liberdade. De que importa saber voar, se a morada for uma gaiola?

Em 1913, o vanguardista russo Vladimir Maiakóvski escreveu: “Eu. / Nas calçadas pisadas / de minha alma / passadas de loucos estalam / calcâneos de frases ásperas / Onde / forcas / esganam cidades / e em nós de nuvens coagulam / pescoços de torres / oblíquas / só / soluçando eu avanço por vias que se encruz(ilham) à vista / de cruci / fixos / polícias”.

O poeta segue denunciando, por meio da metáfora, a brutalidade do homem contra o seu semelhante. Parece irônico citar um poeta russo para ilustrar a dor do povo ucraniano, mas esse vanguardista poético repudiava aquela atrocidade, tal qual muitos contemporâneos o fazem, agora. Jamais me esquecerei do professor Boris Schnaiderman, já velhinho, me dizendo: “Nasci em Uman, na Ucrânia. A fome avançava. Mudamos para Odessa, onde a Rússia já havia tomado conta de tudo. Éramos judeus, precisávamos fugir. Meu pai conseguiu vir para o Brasil e assim sobrevivemos do Holodomor e do Holocausto”. Que dor imensa cortava aquela alma, enquanto ia contando-me aquela história, que os artigos e livros já haviam me contado, mas somente a sua versão tinha sentimento, memória e uma dor inapagável. Pela primeira vez, entendi o estrago que uma guerra faz em uma pessoa. Não se trata do momento do combate, trata-se da ferida que não se cicatriza, por toda a vida. O ser humano é fruto de amor e não de guerra, mas, por algum desvario, ele se esquece disso e se perde nas guerras diárias. Não somente nas guerras entre potências, mas, sim, nas guerras potenciais do cotidiano, que vão do tráfico de drogas, passando pelo tráfico humano, até alcançar as ogivas nucleares.

Carlos Drummond de Andrade, em seu poema “Fazenda”, diz: “Vejo o Retiro: suspiro / no vale fundo. / O Retiro ficava longe / do oceano mundo. / Ninguém sabia da Rússia / com sua foice. / A morte escolhia a forma / breve de um coice. / Mulher, abundavam negras / socando milho. / Rês morta, urubus rasantes, / logo em concílio. / O amor das éguas rinchava / no azul do pasto. / E criação e gente, em liga, / tudo era casto”.

Diferentemente da Segunda Guerra Mundial, a guerra hoje é online, é ao vivo, e por mais que se explodam as torres de transmissão televisa, os satélites ainda dão olhos aos celulares, para que, parafraseando Drummond, nossos olhos não sejam “pequenos para ver uma casa sem fogo e sem janela, sem meninos em roda, sem talher, sem cadeira, lampião, catre, assoalho”.

De que importam tantos saberes, se o homem se esqueceu para que serve o saber?


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