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24/02/2022 às 08h00min - Atualizada em 24/02/2022 às 08h00min

Ame o poema

IVONE ASSIS
A grande sensação deste mês de fevereiro foi o palíndromo de 22/02/2022. Mas, afinal, que palíndromo é esse? Significa que a palavra, nome ou número são proporcionais, ou seja, podem ser lidos da esquerda para a direita ou vice-versa, mantendo o significado inalterado, assim como o título de nosso texto de hoje. No calendário, parece-me que o próximo palíndromo será em 22/12/2122.

A palavrinha vem do grego palin/novo; dromo/percurso, o que dá ao palíndromo uma livre direção, sem perder o sentido. Lembrando que, como construção circular, quando se trata de frases, a acentuação e a pontuação são desobrigadas. Vejamos a frase palíndromo a seguir, em que na leitura reversa dispensa a vírgula: “Socorram-me, subi no ônibus em Marrocos". Já na palavra palíndromo “Afã” é a vez de ignorar o acento. Contudo, há aqueles que dispensam este recurso, por exemplo: ovo, arara, asa, ossos, omissíssimo... ou “a base do teto desaba”, “a grama é amarga”, “a mãe te ama”, “o romano acata amores a damas amadas e Roma ataca o namoro”... e assim se segue uma série de palavras, frases, nomes, números. Neste vaivém de possibilidades, tivemos o 20/02/2002, e agora, vinte anos depois, o fevereiro nos presenteou com o palíndromo 22/02/2022.

Tomando como base essa probabilidade circular dos significados, invoco o ensinamento de Roland Barthes (S/Z, 1970), que nos diz: “A busca do ‘fazer vir à tona’ não o que é um texto, mas o que significa [...]”, sem prendê-lo ao significado, independente da proposta, é imprescindível. É como se o texto fosse sempre inacabado, pois, estando sempre em aberto para a significância, o texto terá o alcance que o leitor necessita. As poesias se encaixam perfeitamente nesse conceito. Mas não só. Daí a importância da interpretação de textos.

A boa educação é formada pela capacidade de se interpretar. Pois, interpretar, nesse caso, é o ato de assimilar, de compreender, de enxergar além das palavras escritas... é pegar para si o exemplo, seja ele individual, coletivo, social...

Em 1940, Carlos Drummond de Andrade publicou “Sentimento do mundo” e, em 1945, “A rosa do povo”. Duas produções inovadoras, em que o poeta aponta sua preocupação com os problemas que circundam a sociedade contemporânea a ele. Mas, seus poemas continuam vivos, como se fossem escritos para o agora, para a nossa sociedade presente. “Mãos dadas” (in: Sentimento do mundo) diz: “Não serei o poeta de um mundo caduco. / Também não cantarei o mundo futuro. / Estou preso à vida e olho meus companheiros. / Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. / Entre eles, considero a enorme realidade. / O presente é tão grande, não nos afastemos. / Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. / Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, / não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela [...] / O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”. (DRUMMOND, 1983, p. 132).

Se o leitor me perguntar o que isso tem a ver com o palíndromo, direi: “Nada. Absolutamente nada, exceto a palavra ‘olho’ que compõe o texto”, no entanto, eu trouxe o poema “Mãos dadas”, não para apresentar frases ou palavras circulares, e sim, para fazer uma leitura do “significado circular”, este que está sempre vivo. Em que é escrito em um tempo, mas se mantém no presente, em todos os tempos. Um texto que não envelhece. O poeta nos convida a não nos perder no passado e nem voarmos para o futuro, pois “o presente é tão grande, não nos afastemos”. A vida é um palíndromo, e deve ser lida em todas as direções sem perder a essência de sua significação. Bom é que se ame a vida, interpretando sua poesia... que se “ame o poema”.

 
*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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