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23/12/2021 às 08h00min - Atualizada em 23/12/2021 às 08h00min

“O infarto da alma”

IVONE ASSIS
O título tomei emprestado da obra da escritora Diamela Eltit em parceria com a fotógrafa Paz Errázuriz, ambas chilenas. E é justamente sobre esta obra que eu convido o leitor a refletir. O “O infarto da alma” é de 1994, e traz um contraponto entre o amor e a loucura de casais apaixonados que se descobriram dentro do hospital psiquiátrico Philippe Pinel, em Putaendo, no Chile. O amor foi a vingança desses internos contra a loucura. São anos de respeito mútuo e dedicação entre esses “loucos”, enquanto, do lado de fora, os “lúcidos” odeiam e assassinam seus pares. Então, fico a pensar em como definir o que é a loucura?

“O infarto da alma” apresenta uma incrível narrativa fotográfica e outra escrita. Em cada foto, vê-se o silêncio da insanidade e riso do amor. Em cada palavra encontra-se a profundidade de uma vida. Se de um lado o Estado e a sociedade personificam esses indivíduos como anormais; do outro, o amor os qualifica como normais. A obra, por meio da multiplicação das vozes, vai ressignificando a vida e seus (pré)conceitos, extraindo sentidos, para que na incompreensão humana se encontre o ser humano que habita tantos corpos e mentes rotulados como insanos.

Em meio ao discurso dominante da razão, que transita na desrazão das coisas rotuladas, as autoras tecem uma narrativa mais que humana, não se trata de uma narrativa visual ancorada na escrita, nem vice-versa, mas, sim, duas autonomias literárias em um só objetivo. Uma poética da sociedade apagada dos padrões da normalidade conceituada. Uma poética da alma. Desse modo, puderam derrubar boa parte dos muros conceituais, erigidos pelo homem, contra aqueles que subsistem por trás dos muros do sanatório, sustentados pela força do amor.

Paz Errázuriz abriu o olhar do cubo branco de sua câmera no início da ditadura militar de Pinochet, 1970, de lá para cá, veio registrando a sociedade invisível, cujo resultado é o que se vê, por exemplo (mas não só), em “O infarto da alma”. Diamela Eltit, escritora e professora universitária, igualmente, vem pontuando sua resistência por meio de sua Arte, sua ficção e seu olhar literário.

A obra se abre com o parágrafo “Nos teus sonhos, eu apareço serena ou te repreendendo pelas assombrosas faltas que o passado carrega? Você sofre ao despertar ou se entrega à invasora inconsciência? Ah, você e eu habitamos uma terra difusa, com fendas tão profundas, que impedem o encontro...”. Cada palavra e cada fotografia vão descrevendo a cumplicidade que há entre os amores edificados na invisibilidade humana que desenha o destino daqueles que vivem por trás dos muros que separam a lucidez e a loucura, sob o crivo humano. Esses protagonistas da vida real constroem suas relações afetivas pautadas no puro sentimento, longe das fontes literárias, cinematográficas ou outras, que inspiram a tantos do lado de fora do muro.

Entre uma fotografia e outra, o leitor vai encontrando o retrato de uma sociedade invisível, que se mantém sob o jugo de uma sociedade muda, porque emudecer-se ante a dor do outro é mais fácil do que erguer uma voz em prol dos que estão impossibilitados de falar. “O infarto da alma” apresenta a sociedade reprimida, envelopada pelo selo da loucura, costurada pelas linhas do esquecimento, carimbadas pela conveniência do Estado. Ou seja, apresenta um grupo de pessoas, cujo coração pulsa, mas os ouvidos moucos não querem ouvi-las. É nesse cubo de silêncio que Paz Errázuriz encontra a melhor luz fotográfica, uma luz que revela a alma do ser humano. Suas fotografias vão se recusando à hipocrisia, para se revelarem à verdade oculta dentro de cada um. O medo vai se perdendo para que a identidade se edifique.

Nessa ruptura do eu, a literatura vai caindo a conta-gotas, como se fosse um remédio contra a cegueira. Se a doença do preconceito tem cura, não sei, mas pode ser vacinada, para que se mantenha sob controle e, desse modo, quem sabe, seja possível, amenizar o infarto da alma.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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