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21/10/2021 às 08h00min - Atualizada em 21/10/2021 às 08h00min

Brasil cultural

IVONE ASSIS
Quando li “Tonico descobre que é de todo lugar”, de Maria Luiza Silva Santos, minha vida passou como um filme, em meus pensamentos, com tantos episódios vividos.

Um deles, eu já morava em Uberlândia, quando, certo dia, uma amiga chegou em casa e disse-me: “Estou esbaforida”, e jogou-se no sofá. Senti um desespero muito grande, pois eu não tinha noção do significado daquela palavra. Corri, busquei água e perguntei-lhe se queria que eu chamasse um médico, ou alguém... Ela, sem entender o que se passava em minha cabeça, respondeu-me que estava ótima. Ficamos olho a olho. Continuamos: “Porque falou que estava sentindo isso, então?” “Isso o quê?” “A coisa que você disse!” “Esbaforida?!” “Isso!” “Todo mundo sente isso.” “Eu nunca ouvi dizer!” “É quando se sente muito calor”. Rimos muito. Rimos alto. Que palavra mais louca.

Ora, ora, o Brasil vive um cenário marcado pelas migrações, e a história da obra lida se inicia na pequena cidade baiana de Cacaulândia, e embora seja fácil deduzir que a cidade seja da Bahia, por conta do cacau, isso já é um desafio geográfico logo no começo, porque além da Cacaulândia da Bahia não estar no IBGE cidades, há a Cacaulândia do estado de Rondônia, igualmente produtora de cacau, sobretudo o cacau clonal. Imagine o desafio que não é para o pequeno Tonico, protagonista da obra, que é arrancado de seu torrão, passando a morar em um lugar de cultura muito diferente da sua. Lugar este que fica oculto, a fim de que o leitor preencha com a cidade que ele quiser. Eu preencheria com Uberlândia, que é para onde vim.

O menino, além da mala cheia de saudades e dos olhos cheios de curiosidade, levou em sua mudança as incertezas, em especial as incertezas culturais e identitárias, as quais lhe pesaram quando, em sala de aula, foi indagado: “De onde você é?” e quando, logo na chegada, ele passa por um pequeno vendedor ambulante, e este grita: “Olha aê, Olha aê a tangerina” (Santos, p. 16). Tonico tem certeza de que aquela fruta não é tangerina, mas, sim, mexerica. Afinal, havia um pé delas em sua cidade natal. Mais tarde, aprendeu que a fruta poderia, ainda, se chamar, bergamota, ponkan, mimosa... Foi aí que o menino passou a comparar tantas coisas iguais, porém de nomes diferentes. Mandioca, por exemplo, era aipim, que também era macaxeira... e assim foi uma multidão de coisas.

A nova cidade de Tonico era cheia de “outros Brasis”, então a professora criou o projeto “Entre dois mundos”, para que todos aprendessem a cultura na prática. A exploração foi feita por meio de desenhos, escritas e muita conversa. Ao final, uma feira cultural veio a consolidar o projeto. Evento, esse, que despertou as brilhantes mentes infantis para a vida daqueles que pertenciam ao Brasil inteiro; especialmente, quando se trata das dimensões social e cultural: dialetos, culinária, empregos...

No Brasil, a migração é quase uma tradição cultural, por estar vinculada ao fator “mudar de vida”. O brasileiro, geralmente, busca oportunidades fora do local onde vive, é como se necessitasse da movimentação geográfica para alcançar a ascensão econômica, o que nem sempre acontece.

O crítico Alfredo Bosi afirma: “O conto cumpre a seu modo o destino da ficção contemporânea [...]. Ora é o quase-documento folclórico, ora a quase-crônica da vida urbana, ora o quase-drama do cotidiano burguês, ora o quase-poema do imaginário às soltas, ora, enfim, grafia brilhante e preciosa voltada às festas da linguagem (BOSI, 1974, p. 7).

Tonico, em meio às suas linguagens, passa a entender que, para ele, “ser de um lugar só” (Santos, p. 36), é pouco. Para Octavio Paz (1982, p. 302): “A linguagem é simbólica porque trata de pôr em relação duas realidades heterogêneas: o homem e as coisas que nomeia”, mas a relação entre os objetos e as palavras sempre foi motivo de inquietação filosófica.

O conto infanto-juvenil Tonico cumpre o seu papel ficcional na literatura, explorando muito bem o festival de linguagem que habita o Brasil cultural.

*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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