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17/09/2021 às 08h00min - Atualizada em 17/09/2021 às 08h00min

Histórias em fragmentos

WILLIAM H STUTZ
 
  1. Tsunami
Pela manhã abri torneira da pia. Cozinha do quintal. Tinha um monte de formiguinhas, daquelas miudinhas se deleitando com um pingo de sobra doce.

Tsunami doméstico. Agacharam-se todas em pânico, grudadas em inox sem graça, puro brilho. Morte iminente. Desespero/apego à vida. Tive dó, fechei ligeiro a cachoeira. Pelo que vi, salvaram-se todas.
  1. Manhã de sol
Dias lindos não merecem acontecer segunda-feira.

Sábado ou feriado, isso sim. Acordei cedo com sol e sabiás melódicos em minhas pitangueiras carregadas, verde puro cravejado de vermelhas-doces joias. De meu jambolão gigantesco bando de coloridos tucanos medão bom dia.

Sanhaços azul turquesa aos pares em incomum canto matinal.

A vida é bela, não basta olhar, temos que respirar os dias.

Decreto pois que toda segunda-feira de sol brilhante seja vivido como feriado.

Revoguem-se as disposições e os calendários em contrário.
  1. Flor de Pitanga
Passo ligeiro, pé de vento.
Deixo cheiro - flor de pitanga.
Tamanha florada, o chão branco de miúdas pétalas.
Cheiro doce, lembra infância, lembra um não sei aflito de vontade de lembrar.

As abelhas em zumbida algazarra carreiam pólen dourado e tropel alado. De minha janela, céu ainda lusco-escuro de alvorecer tardio, as vejo no eterno indo sem vir.

O chão branco de miúdas pétalas, caminho flor.
Passa moça,
passa amor.
Só não passa, essa fica, latente, constante, indefinida
só não passa essa estranha indescritivelmente vazia dor.
Plantio
Quisera eu entender das gentes, pois olhe
Colhi viçosas mudas de grama nascidas em brita, pedra seca
e rude
grama cuiabana
plantei em chão fértil, fofa terra de cultura
Morreram todas.
Tem gente que é assim, árida
Plantio
Quisera eu entender das gentes, pois olhe
Colhi viçosas mudas de grama nascidas em brita, pedra seca
e rude
grama cuiabana
plantei em chão fértil, fofa terra de cultura
Morreram todas.
Tem gente que é assim, árida

 
  1. Procura-se um gato
Procura se um gato, atende por nome algum. Seu pelo é negro como a mais escura das noites. Noite daquelas sem estrelas ou lua, daquelas em que até os vaga-lumes descansam, os grilos emudecem, as corujas, ora veja, descansam aninhadas com seus amores.

Procura-se um gato que ronrona canções mansas e ensina bem querer.

Gato este que me mostrou o caminho de retorno ao gostar, ao carinho, ao amor verdadeiro. Gato preto este que levou consigo meus lutos. Aberto a paixões, pronto.
Como sina, perco bichano. Outro dia contei dele, de seu do nada aparecer, tomou conta manso. Subia a janela e batia para entrar, miava serenatas quando com fome ou sede. Sabia pedir com o olhar de ver no escuro.

Se perdeu o caminho, que o ache de volta. Talvez uma saída para namorar? Uma farra noturna?

Mas se roubado foi, pois manso era, cativante anjo da noite, cuidem bem dele, sua luz clareia o negrume, contraste com seu pelo.

Que receba afago e carinho. Ele retribuirá com virar de olhos e miados sonoros. Que seja bem tratado. Poucos gatos têm dono, eles se apossam das gentes. Se foi levado e não gostar, toma rumo e me acha se essa for sua vontade.

Minha safra de perdas parece não ter fim.

Que seja assim a última da colheita, pelo menos, por um tempo. Como chão que pede repouso após o plantio, minha alma, meu coração pede pausa em perdas. Deixa tudo cicatrizar em preparo para outra safra, pois perdas são inevitáveis, mas não precisam vir todas de uma vez.

Procuro um gato, um gato preto que mesmo recebendo nome de Ângelus, da oração que só depois vim conhecer, não atende chamado, não se dá conta. Anjos não carecem nomes nem sexo. Procura-se um gato que chegou gata, descobri depois, gato era.

E logo ele que me devolveu a crença em amor sem cobrança, todo pautado na confiança.

Recompensa-se bem. Ofereço amizade plena e sincera, ofereço ombro para aflições compartilhar e meu tempo para ouvir.

Acordo cedo. Um vazio esquisito toma conta de uma cabeça repleta de pensamentos acelerados. Falta alguma coisa. O arrumar a cama é obrigatório. Mesmo morando só, não consigo deixá-la desarrumada. Marmita pronta enrolada em alvo pano, fruta para meio da manhã. Hoje é dia de coleta de lixo. Guardo o meu comigo para só entregá-lo à porta nos dias certos. Algazarra matinal da passarada. Chego à janela do quarto, beija-flor vem me ver bem de pertinho, quase pousando em minha mão. Não, não é licença poética nem invenção, veio em assobio de asa e bom dia me deu.
 
Desço a escada pesado. Falta algo. Paro apoiado no corrimão, olho do alto a sala vazia de movimento, nem vento. Suspiro, dou de ombros.

No abrir a porta, quem vejo. “Meu” gato! Um miado alegre a me receber. Afago com força seu dorso, seu pescoço. Murmuro injúrias carinhosas ao seu ouvido. Ele ronrona alegre. Trançando entre minhas pernas me acompanha até a rua, onde deposito o lixo no lugar de lixo.

Sigo para o trabalho e ele, o gato, fica sobre namoradeira da varanda a me seguir com amarelos olhos.

Estará lá quando voltar? Nunca saberei. Gatos são livres, viva a liberdade.
 
 
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