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02/09/2021 às 19h42min - Atualizada em 02/09/2021 às 19h42min

O retratista

WILLIAM H STUTZ
Junto às crianças, o retratista vem aí. Calada a mulher arrumou as crianças. Uma a uma, da menorzinha de colo ao primogênito. Penteou calmamente as madeixas da filha. Que mesmo diante do espelho de cristal reluzente parecia não se ver, olhar perdido em sonho adolescente. Aos garotos os ternos engomados. Para elas, os laços e cândidos vestidos de puro e alvo algodão com bordados, branco sobre branco.

Crianças prontas, pôs-se a arrumar. Soltou os longos cabelos e deixou-os escorrer por suas costas, nunca saia à rua ou à sala de casa com eles soltos. Em turbante os enrolou e em coque passou longo prendedor de marfim.

No jardim de inverno pose feita. Ele postado às costas da esposa, mão direita discretamente a repousar em seu ombro. A pequena no colo, o filho mais velho em pé ao lado do pai. A filha sentada no chão aos pés da mãe, em piso de tábuas corridas sobre tapete persa.

O retratista, experiente, já havia colocado a placa de filme em sua máquina, e num levantar de mãos que instintivamente roubou todos os olhares, acionou o disparador congelando eternamente a família.
Nunca um sorriso, nunca, nunca uma prosa. Assim foi em vida, longa vida, assim em redonda e lustrosa moldura ficariam para todo sempre em alguma parede descascada pelo tempo ou canastra empoeirada em algum canto de quarto.

Besteirinhas psicografadas
Como soco seco em vazio estômago, sobe em peristaltismo contrário e acaba na garganta como sufocante bolha de ar.

O escrever. As letras mansas como gado tangido em corredor de terra, a vontade, a ideia, a vontade que conduz vem rápida. Ou se guia o gado ou o rebanho, como as palavras, se desfaz em nuvem pó, cada uma toma um rumo. Nunca mais

Eu queria ter mais letrinhas na cabeça assim escreveria uma história que de tão grande a boiada sonora seguiria em longa fila. Das gerais das Minas ao sertão de imenso Goiás sem pedágio que a interrompesse. A caneta, meu berrante, meus óculos, minha visão.

De tão grande que o tropel levantaria nuvem de poeira densa. Se faria noite por seis dias, apagando estrelas por seis noites. E quando cortado o trecho e o pó em mansidão se assentasse, não haveria sujeira e tristeza, mas sim colorida e imaculada paisagem. Seria como se as mais puras das geladas brisas das montanhas em julho, lá da serra por ali fossem sopradas e a escuridão do tropel seria substituída por sol em invulgar brilho. Reinando. As gentes seriam felizes, belas e doces.

Eu queria tanto ter mais letrinhas na cabeça e o dom de juntá-las em harmônico conto. Seria conto de amor a longa história. Eu queria.

O escrever sem ter lido. Estranho. Descobrir Kant, ou a saga de Tristão e sua salvadora e venenosa língua de dragão, troféu.

É como conduzir caminho vazio, sem carga. Porém o condutor se sente feliz pois para ele, seus olhos e seu corpo, a carga é farta em algo que alimenta, irá satisfazer almas. Entre arrumações de camas, vassouras e faxinas, as ideias vão brotando. Entre trocas de pês e bês atrabalhando e atrapalhando. As histórias se formando, os poemas nascendo assim como que sozinhos, alguns cheirando a detergente outros a temperos raros: Anis estrelado em céu azul?

Psicograficamente, do nada, é o vazio da criação. Se algum valor literário pode ou não a escritos assim serem conferidos, se ruins ou bons podem assim soar, não importa. Quem escreve, quem compõe lava a alma, limpa a casa.

Vive de ideias só suas sem sorver sentimentos alheios, sem se alimentar da alma do outro. Pensamento completo, só seu, difícil, inteiro, completo/completo/completo. Não-vampiro de emoções.

Abstração
Quem a visse de longe a daria por possuída ou coisa do gênero.

Descalça e em desenfreada carreira cruzava o pasto de um lado para outro. Não se dava conta e nem se incomodava com as enormes manchas brancas espalhadas no meio do colonião, e ao que se via os gigantes nelores apesar de costumeiramente mal-humorados, também não lhe davam a mínima. Acompanhavam com olhos bovinamente mansos aquela correria. Apenas uma ou outra parida se levantava com a cria ao pé e a seguia com as vistas e o corpo, nunca lhe dando as costas, instinto, protegendo filhote. Nenhum nela investiu.

Dois quero-queros levantaram voo aos gritos bem perto dela o que a alegrou mais ainda, juntando à sua carreira agudos sons a imitar as aves.

De tempos em tempos parava junto à grande vasca que servia de bebedouro para o gado e lá mergulhava a cabeça com gosto. Em alegre arroubo sacudia o enorme cabelo preto molhado e aos pinotes continuava sua dança de felicidade. O vento varria-lhe a face e o doce cheiro do mato lhe dava mais e mais energia para correr e pular. Borboletas coloridas espalhavam-se em frenesi à sua passagem. Preás afobados se entocavam medrosos enquanto perdizes em assobiados vôos abriam caminho. Cambalhotas no capim. Se jogou de vez no verde não se importando em nada se havia ou não carrapatos para lhe subirem às vestes e à pele. Descansando observava formigas cortadeiras em militar desfile a empunhar verdes bandeiras de folhas. O ir e vir dos bichinhos quase a adormeceu. Dormir de jeito algum.

Caminhou arrastando a ponta dos dedos dos pés pelo trilheiro de gado. Nas mãos levava um enorme galho de mama-cadela com o qual cutucava tudo que era moita por onde passava, aprendizado, podia ter cobra. Ao longe pôs atenção em goiabeira carregada, vista apurada de gavião real. Nova carreira e em segundos estava a balançar em fortes galhos malhados e a saborear o doce-azedo das frutas ainda de vez. Um marimbondo como que a avisar passou zunindo próximo à sua cabeça. Tempo só de ligeiro desviar do bicho e com o canto dos olhos descobrir a imensa cachopa, morada deles. Com cuidado infantil desceu da árvore, caçou rumo de casa. Sentiu cheiro de fogão de lenha e de comida. Avistou lá embaixo um carro a levantar poeira na estrada também rumando para lá. Riu com estranha alegria e num galope só buscou a mesma direção, eram os primos e amigos de primos a chegarem da cidade, vinham de longe. Nem se importando com sua aparência de bacorinho de chiqueiro de tão suja, com o coração disparado em aflição e pressa deslizou como o próprio vento em direção aos que chegavam. Mal sabia que estava prestes a conhecer seu primeiro e maior amor e que tudo em sua vida de transformaria para sempre.
 
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