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05/08/2021 às 08h00min - Atualizada em 05/08/2021 às 08h00min

Caminhão de ossos

IVONE ASSIS
Em 1984, ano de muita fome no Brasil – não muito diferente de hoje –, ano de absoluta crise e inflação, época em que eu trabalhava em uma casa de carnes, e assistia, diariamente, as crianças do “caminhão de osso” fazerem a retirada dos ossos descarnados, para levarem para a fábrica de farinha de ossos. Antes, porém, aquelas crianças, entre 5 e 9 anos, pegavam as facas e, rapidamente, retiravam toda e qualquer sobra de carne que havíamos deixado naqueles ossos, na pressa de nossos serviços. Aquela carne extraída era amontoada em um cantinho da carroceria, com grade alta, da C-10 fedorenta que transportava ossos e meninos. Ao final da coleta pela cidade, aquelas carnes eram divididas em partes iguais, e iam para a mesa das famílias daquelas crianças, que contavam com aquele alimento diário. 37 anos depois, e ainda vejo aqueles meninos sorridentes, sem camisa, descalços, vestidos com um calçãozinho de tergal marrom, saltando da carroceria da caminhonete, ainda em movimento, abrindo o portão e avançando sobre aqueles ossos, debatendo contra as moscas. Eles levavam ânimo para nós, que começávamos o trabalho às 5h da manhã. Eu, com 15 anos, assistia àquele movimento como parte natural do processo. Lembro-me de que, na época, houve uma grande matança de cães e gatos em muitas casas de carnes, no Brasil todo, por sorte, onde eu trabalhava, era uma empresa de referência em qualidade, por isso não vivi esta humilhação de cães e gatos. De vez em quando, dávamos um pouco de carne àqueles guris, porque, nem só de ossos vivem as crianças famintas.

Quando saí de lá, pensei que a fome havia acabado, mas só aumentou. Naquele 1984, era publicada a 10.ª edição de “Geografia da fome: o dilema brasileiro – pão ou aço”, do escritor “esquecido” Josué de Castro. Daquela obra se houve o ronco das barrigas vazias. Dali eu ouço a fome dos seis filhos do meu professor de inglês, da sexta-série (1980), que dava aulas no colégio estadual pela manhã, e trabalhava na roça à tarde, enquanto sua esposa, igualmente, dava aulas pela manhã e lavava roupas na bacia, de água tirada da cisterna, para os outros. É que o governo, à época, achou por bem não pagar aos professores.

Em 2016, Mercês de Fátima dos Santos Silva defendeu seu doutorado sob o tema: “Josué de Castro: um autor do legado esquecido?”. A pesquisa se abre dizendo: “Josué de Castro é um autor controverso no debate intelectual brasileiro, oscilando entre o reconhecimento de sua participação na construção de instituições científicas e políticas para formulações e ações de combate à fome e o ‘esquecimento’ de seu legado intelectual como intérprete da realidade social brasileira nos debates acadêmicos. Entretanto, este ‘esquecimento’ acadêmico vem sendo reelaborado nos diversos campos científicos pelos ‘militantes’ e estudiosos de seu pensamento”. Compreendo, perfeitamente, a cobrança de Josué, pois, este assunto é maior que a escrita de militância, trata-se de assunto de pauta, dado à sua urgência e gravidade. “Há dois caminhos diante de nós: o caminho do pão e o caminho da bomba atômica. [...]. Eu simbolizo pelo caminho do pão o caminho da justiça social, para dar pão a todos os que têm fome [...]” (CASTRO, 1954).

Nessa semana, o mundo inteiro assistiu ao caso do sobrinho e do tio baianos que tiveram suas vidas ceifadas por alguns quilos de carnes. Quando alguém rouba comida é porque a situação já chegou ao extremo da penúria. Não se tortura e mata pessoas famintas, mas, sim, oferece-lhes alimento. A fome não escolhe lógica, nem legalidade, nem decoro, a fome quer ser alimentada. Não estou a defender o roubo de alimentos, porém intriga-me o desprezo aplicado à gravidade da situação. Filhos de uma nação em que políticos bem assalariados recebem todas as benesses possíveis, devem, no mínimo, ter oferta alimentícia, porque é o mínimo para se sobreviver. E se alguém questionar: “Por que não vão trabalhar?”, como é que eu posso classificar os meninos do “caminhão de ossos”?


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