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29/07/2021 às 08h00min - Atualizada em 29/07/2021 às 08h00min

Viver

IVONE ASSIS
Observando o descontentamento social que atravessamos, em que as pessoas estão cada vez mais inflamadas, formando um turbilhão de estresse e brutalidade, e muitas querem consumir mais do que necessitam, enquanto poderiam viver com muito menos do que já tem, deduzi que esse desejo exacerbado vai cegando a visão da consciência. Foi aí que me lembrei do poema “O cão sem plumas” (1950), de João Cabral de Melo Neto, que diz: “A cidade é passada pelo rio / como uma rua / é passada por um cachorro; / uma fruta / por uma espada. // O rio ora lembrava / a língua mansa de um cão / ora o ventre triste de um cão, / ora o outro rio / de aquoso pano sujo / dos olhos de um cão. // Aquele rio / era como um cão sem plumas. / Nada sabia da chuva azul, / da fonte cor-de-rosa, / da água do copo de água, /da água de cântaro, / dos peixes de água, / da brisa na água. // Sabia dos caranguejos / de lodo e ferrugem. / Sabia da lama / como de uma mucosa. / Devia saber dos povos. / Sabia seguramente / da mulher febril que habita as ostras. // Aquele rio / jamais se abre aos peixes, / ao brilho, / à inquietação de faca / que há nos peixes. / Jamais se abre em peixes [...].

O poema, publicado em Barcelona, apresenta os traços de miséria social, em um vocabulário de fácil compreensão. Os versos de “O cão sem plumas” vão despejando críticas conforme o movimento das águas de um rio, enquanto o som das águas vai disfarçando o som do “choro de decepção” do eu-lírico, diante da falta de solidariedade do Outro, no contexto. João Cabral, observando o espaço, o mangue, desnuda sua impressão de mundo, por meio da poesia. O manguezal representa a vida difícil do trabalhador no mangue, que enfrenta a penúria social. Um poema que versa a pobreza só pode vir sem plumas. Nele, o rio serpenteia a cidade, ora fiel, ora solto e corriqueiro feito um cachorro de rua, ora bravio e voraz feito espada cortante. Porque o rio tem dias de seca e dias de enchente. Também há momentos em que o rio é sujo e moribundo, e vai sendo abocanhado pela imundície do esgoto, “aquoso pano sujo”, “um cão sem plumas”. O rio divide a cidade, separa os pobres e os abastados. O rio é de fases e de paragens, mudando de cenário de tempos em tempos. Então, o rio pode ser também a ponte que resiste, que protege, sendo, portanto, a espada protetora. Esse rio já se perdera no lamaçal, já perdera sua identidade, e agora é sujo e lamacento, desconhece a cristalinidade da água azul e potável, tornando-se impróprio aos peixes e ao homem. O rio urbano é morada hostil para aqueles que dependem dele. E quando o rio é mangue, então ele encobre o caçador de caranguejos. Desse modo, em vez de se tornar uma joia, transforma-se em mero molusco. É assim que o habitante local, esquecido no tempo (o cão sem plumas), vai tentando sobreviver, sob as batidas do relógio.

O poema “O relógio”, também de João Cabral de Melo Neto, relata: “Ao redor da vida do homem / há certas caixas de vidro, / dentro das quais, como em jaula, / se ouve palpitar um bicho. // Se são jaulas não é certo; /mais perto estão das gaiolas / ao menos, pelo tamanho / e quadradiço de forma. // Umas vezes, tais gaiolas / vão penduradas nos muros; / outras vezes, mais privadas, / vão num bolso, num dos pulsos”.

“O relógio” segue representando o sujeito social, com seus altos e baixos, sua força e fragilidade. O qual muitas vezes é quebradiço, e/ou vive em gaiolas. Sabemos que “Um galo sozinho não tece uma manhã: / ele precisará sempre de outros galos. / De um que apanhe esse grito que ele / e o lance a outro; de um outro galo / que apanhe o grito de um galo antes / e o lance a outro; e de outros galos / que com muitos outros galos se cruzem / os fios de sol de seus gritos de galo, / para que a manhã, desde uma teia tênue, / se vá tecendo, entre todos os galos”. Esse poema ensina a arte de governar bem e liderar com sabedoria e criatividade o viver.

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