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21/07/2021 às 19h01min - Atualizada em 21/07/2021 às 19h01min

Viagem inesquecível

IVONE ASSIS
Nesta semana, o mundo inteiro assistiu à fantástica viagem inaugural de 10 minutos ao espaço, em que o jovem Oliver Daemen, de 18 anos, foi o tripulante mais novo a fazer este percurso, cujo bilhete espacial custou uma bagatela de 28 milhões de dólares por assento, na Blue Origin. Até o momento, é o turismo mais caro e rápido de que já houve notícia. Em 2022, a linha espacial estará aberta ao público, então, qualquer um que desejar e tiver dinheiro em caixa poderá ir e vir, ou melhor, subir e descer quando bem quiser. Isso não deixa de ser impressionante.

Espantoso também é observar que, enquanto o pai de Daemen dá ao filho a alegria desta viagem ao seu lado, milhares de outros pais viajam no espaço perdido em seus olhares, buscando encontrar comida para alimentar os filhos. Não há vínculo entre as duas histórias, apenas estou a ilustrar uma triste realidade, em que o desfavorável cenário não muda, por mais que o progresso avance. É estranho pensar que a vida humana não faz parte da prioridade para o progresso. Estando desequilibrada como está a condição humana, já há tanto progresso, imagine como não seria o mundo: a ciência, a tecnologia, o lazer e tantas outras conquistas, se houvesse oportunidade de vida, aprendizagem e conhecimento para todos? Quantas mentes brilhantes não deixam de atuar por precisar investir todo o seu tempo em busca de sobrevivência?

Mario Quintana, em sua obra “Esconderijos do tempo” (1980), apresenta o poema “Viagem futura”, que diz: “Um dia aparecerão minhas tatuagens invisíveis: / marinheiro do além, encontrarei nos portos / caras amigas, estranhas caras, desconhecidos tios mortos / e eles me indagarão se é muito longe ainda o outro mundo...”. O poeta rasga a lógica do tempo e adentra em um pós vida, no qual o oculto de outrora ficará à mostra. Suas tatuagens invisíveis podem ser tantas marcas, podem ser seus ais, seus anseios, e o ambicionado amanhã melhor, quando o poeta espera que o sol brilhe para si, mas, não, o amanhã não muda; o amanhã chega e os problemas continuam sua marcha, então o poeta se encontra com seus velhos conhecidos, que também persistem à procura do outro mundo, o mundo esperançado, onde encontrariam um futuro melhor, mas o futuro melhor parece não chegar para todos.

O filósofo Gaston Bachelard, em sua obra “A intuição do instante” (2007, p. 99), afirma: “A poesia é uma metafísica instantânea. Num curto poema, ela deve dar uma visão do universo e o segredo de uma alma, um ser e objetos, tudo ao mesmo tempo. Se segue simplesmente o tempo da vida, ela é menos que esta; só pode ser mais que a vida imobilizando-a, vivendo no próprio lugar a dialética das alegrias e das dores. Ela é, então, o princípio de uma simultaneidade essencial em que o ser mais disperso, mais desunido, conquista sua unidade”.

Pensando nesse conceito de Bachelard e também pensando no conceito de progresso e tecnologia futura, considerando minha contemporaneidade, trago o poema “Motivo”, de Cecília Meireles, publicado em sua obra “Viagem” (1938/1939, p. 144), que diz: “Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta. // Irmão das coisas fugidias, / não sinto gozo nem tormento. / Atravesso noites e dias / no vento. // Se desmorono ou se edifico, / se permaneço ou me desfaço, / — não sei, não sei. Não sei se fico / ou passo. // Sei que canto. E a canção é tudo. / Tem sangue eterno a asa ritmada. / E um dia sei que estarei mudo: / — mais nada”.

Neste poema, o eu lírico, em seu descontentamento, opta por ser simplesmente o poeta. Em sua inquietação e amplitude, faz-se o movimento da canção, faz-se o silêncio e o grito. É, ao mesmo tempo o remédio e a dor, dentro de ir e vir na desordem do mundo. É nesse jogo de palavras que Cecília manifesta sua resignação consciente diante das agonias da vida, nesta viagem inesquecível.

Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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