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06/07/2021 às 09h00min - Atualizada em 06/07/2021 às 09h00min

Contraluzes de Romulo Fróes

ENZO BANZO
Encontrei Romulo Fróes uma vez, numa dessas áreas comuns de camarim de festival, acho que foi em Salvador, deve ter bem uns dez anos. Conversamos como bons amigos desconhecidos que conhecem muita coisa em comum. De lá para cá muita coisa Romulo fez. Não custa apresentá-lo como um dos autores, junto de Alice Coutinho, do samba “Mulher do fim do mundo”, que reconsagrou Elza Soares no álbum que talvez seja o mais importante dos anos 2010. Como dizia, estava eu lá conversando com aquele artista interessado nas coisas que me interessam, esse mundo da canção do Brasil, uma arte que se grava em disco e na memória, base de nossa educação sentimental. Romulo brincava se dizendo um compositor meio artista plástico, não tanto por sua formação na área, mas identificando nisso uma espécie de contralinhagem.

Essa brincadeira me veio à lembrança de imediato assim que soube do novo duplo lançamento de Fróes, os álbuns opostos complementares “Aquele nenhum” e “Ó nóis”. Antes mesmo de ouvir os contragêmeos, li que um é todo em voz e violão, e o outro composto por uma faixa única, na qual as mesmas canções surgem entrelaçadas e fragmentadas em outra ambientação sonora.

Play, por onde começo? As apresentações me tentam a ir pela face mais experimental, o álbum "Ó nóis" (álbum de uma faixa só, e não single como querem as plataformas de música). De cara, ouve-se a voz de Jards Macalé: “Romulo, vai dar errado!”. Quem aprendeu a nadar na contramaré de Macalé suspeita: é um dar errado que é dar certo, diante do ridículo que é dar certo numa certa ordem do mundo.

Play. Fecho os olhos, sinto-me em algum museu das artes além-modernas, percorrendo os espaços de uma instalação sonora, muitas possibilidades de percepção para os sentidos. Gosto de ouvir as notas da melodia da voz sem instrumentos, voz-instrumento, da brusca aparição de sons inesperados. Corta uma canção em meio a outra, surge um diálogo com outra desconhecida voz – uma voz de pai –, Romulo lhe pedindo para cantar; a outra voz insiste no silêncio. Silêncio sob o qual Romulo entoa “Aos pés da cruz”, aquela canção que João Gilberto ouvia na voz de Orlando Silva nos anos 1940, e que remodelou no “Chega de Saudade” de 1959: “o coração tem razões que a própria razão desconhece...”. A razão desconhece, o tempo é todo agora, nos fragmentos das vozes, dos sons, das canções, das memórias individuais e coletivas. Raia o passado no caos do presente.

Esse despontar de tempos entrecruzados não se limita à desordenação experimental de “Ó nóis”. Na aparente trilha limpa do álbum “Aquele nenhum”, esses saltos de passado na polifonia do presente ecoam nas costuras e colagens dos jogos de intertextos, que já se anunciam na faixa de abertura (“Ó nóis”, a canção, de Romulo e Nuno Ramos), que evoca a “Saudosa Maloca” de Adoniran Barbosa; a conversa é tête-à-tête: “Doutor, pra mim/ ninguém nunca deu frio conforme o cobertor”. A maloca é saudosa e é agora, erguida em uma construção sob seus ecos, tetos para além dos limites.

As referências são explícitas a Macalé (“Baby infeliz”) e Elza Soares (“Elza aqui”), mas também é possível construir um sem fim de novos cruzamentos. A audição da faixa “Aquele nenhum” abre em minha janela um diálogo com “João Ninguém”, de Noel Rosa, lá da década de 1930: o João que “nunca se expôs ao perigo/ nunca teve um inimigo/ nunca teve opinião” ressoa naquele que “pensa ser vidro que não guarda luz/ pra ser esquecido seu rosto comum”. Mas Romulo sabe da luz do silêncio, de onde emanam os sons de sua contraluz. Na dobra de dois álbuns que são um, o tempo ressoa vivo, passado-presente-futuro, aquele nenhum vira um nóis infinito: “não tem um sol só pra você/ nem a escuridão esconde a luz por você”.



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