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22/06/2021 às 09h00min - Atualizada em 22/06/2021 às 09h00min

O fascínio por pandemias

Por Aline Romani
De proibidos e perigosos a sucesso de vendas, os quadrinhos de terror levantam polêmicas na sociedade desde o início do século XX. Dividem até os leitores mais apaixonados por quadrinhos. Muitas vezes considerado uma literatura de baixa qualidade e mau gosto, conhecidos pelas cenas de muito sangue e violência, os quadrinhos de terror também são esteticamente impactantes e fascinantes. Uma história bem desenhada não precisa de uma só palavra para causar arrepios ao leitor.

HQs de terror têm uma ligação estreita com o quadrinho alternativo e com bandas heavy metal, seu intuito é causar impacto, desnudar os horrores de uma sociedade hipócrita, fazer sangrar o cidadão de bem. No entanto, essa é só uma vertente dentre muitas outras. A origem das histórias de zumbi, tão aclamadas atualmente e também consagradas no cinema e crossovers, é calcada, principalmente, no preconceito e no medo do outro.

Alguns estudiosos dão conta que os mortos vivos representariam na Europa a “invasão” estrangeira. As hordas destruidoras são uma metáfora para afirmar que em um mundo civilizado os imigrantes destroem tudo que veem pela frente, transformando-o em caos.

Ainda existe outro significado, que originou a palavra zumbi: na Martinica e no Haiti, poderia ser um termo geral para descrever um espírito ou um fantasma, qualquer presença perturbadora que assumiria milhares de formas à noite. “White Zombie”, filme de terror independente lançado em 1932 nos EUA, surge bem no fim da ocupação americana no Haiti.

Durante este período, os Estados Unidos assumem uma postura de um país modernizador e com uma missão civilizatória, alertando para a má influência das demais culturas. O terror provocado pelo filme girava em torno da história de um casal, Madeleine e Neil, que em uma viagem ao Haiti encontram um feiticeiro maligno. O feiticeiro se apaixona por Madelaide e a transforma em zumbi, a fim de dominá-la. Neil, volta para casa com a presença perturbadora de Madelaine. Enfim, o feiticeiro significa uma influência maligna de outra cultura, capaz de transformar as pessoas em algo temível. A superstição passa a ser culpada pelo fim trágico do mundo civilizado. O zumbi remete ao fim da sociedade americana e a barbárie.

É interessante como a figura de um líder ganha importância nas histórias de pandemia e caos, mesmo que seu comportamento seja questionável, ético e moralmente. Sem ele o grupo se perde e não consegue colaborar ou se comprometer com o coletivo. É preciso alguém, de pulso firme, para manter a ordem e lembrar a todo tempo que ainda podemos ser civilizados. Por outro lado, os vilões dessas histórias, para além dos zumbis, são líderes e defensores de comunidades ditas primitivas, que colocaram seu instinto de sobrevivência à frente de sua pretensa humanidade. É comum aparecerem discussões filosóficas e religiosas sobre o suicídio, canibalismo, incesto e promiscuidade.

Todo esse imaginário nos leva a refletir sobre o outro, aquele que não se parece comigo. Hierarquizamos culturas como modos de vida superiores ou inferiores. Nada é por acaso. Em pleno surto de COVID-19, há quem afirme, sem fundamento científico algum, que o vírus é fruto de hábito alimentar estranho dos chineses, de praga divina, ou de conspiração de grandes empresas internacionais. Debates televisivos calorosos (e irresponsáveis) são promovidos para decidir qual atitude seria mais ética no caso de impossibilidade de atendimento da população contaminada: quem deve ser salvo primeiro, os presidiários ou os cidadãos de bem? O debate é apenas uma reprodução da dicotomia bem e mal tão difundida pelo quadrinho e cinema estadunidense.

O fascínio por HQs de terror causado por uma pandemia pode estar relacionado a bons diálogos, reflexões e cenas de suspense. No entanto, eles nos provocam sentimentos mais profundos, nos arrancam da rotina e nos permitem perceber a concretude da vida. A destruição é o mais fascinante dos desafios humanos, ela nos obriga a renascer, mas não sem antes nos colocar diante de nossos medos, e principalmente, diante das vontades mais reprimidas. A autorização para ser egoísta e para revelar o pior de si é um sintoma da iminência do fim. Afinal, o inferno são os outros.



Esta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
 
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