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03/06/2021 às 09h00min - Atualizada em 03/06/2021 às 09h00min

Gaiola

IVONE ASSIS
De 2020 até aqui, o assunto que mais intriga o mundo é a Proteína S do coronavírus. Que monstro é este, que abocanha as vidas e mutila as almas? Ninguém sai ileso aos seus ataques, porque objetiva ou subjetivamente o vírus agride a todos. Quando ouvi, pela primeira vez, sobre a Covid-19, eu havia acabado de assistir ao filme Bird Box, a que uns traduzem “Caixa de pássaros”, outros preferem “Às cegas”, mas eu opto por “Gaiola”, e foi impossível não conectar um assunto ao outro, porque ambos (vírus e filme) remetem ao medo, ao isolamento, à morte, à falta de domínio sobre a situação... Esta é uma analogia, em hipótese alguma ouso vincular o filme a qualquer epidemia ou catástrofe. O fato é que fiquei a imaginar que a Covid-19 seria algo breve, como o filme, mas não, o monstro entrou em cena inesperado como um trailer e se firmou como um seriado.

O poema “O morcego”, de Augusto dos Anjos, diz: “Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. / Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede: / Na bruta ardência orgânica da sede, / Morde-me a goela igneo e escaldante molho. // Vou mandar levantar outra parede... / — Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho / E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho, / Circularmente sobre a minha rede! [...] / A Consciência Humana é este morcego! / Por mais que a gente faça, à noite, ele entra / Imperceptivelmente em nosso quarto!”.

Todos os dias, milhões de morcegos levantam voos noturnos, a exigir respostas, enquanto, amedrontado, o bicho-homem se põe a observar pelo buraco da fechadura, para ver se a esperança bate à porta. A noite não passa e o olho que observa por trás do ferrolho é o do morcego.

O primeiro de junho foi marcado pela autorização da OMS para o uso da Sinovac, a nossa Coronavac, isso representa um nascer do sol na aurora, pois, o seu armazenamento fácil é sinônimo de adequação e recurso aos mais necessitados, àqueles de mais difícil alcance. Sabemos que entre o real e o cinematográfico há um labirinto a se atravessar, mas, pelo menos, é uma luz que irradia pelo buraco da fechadura.

Outra vez, recorro-me a Augusto dos Anjos, em seu poema “Vozes da morte”, para encontrar alento ao desalentado: “[...] Não morrerão, porém, tuas sementes! / E assim, para o Futuro, em diferentes / Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos, // Na multiplicidade dos teus ramos, / Pelo muito que em vida nos amamos, / Depois da morte inda teremos filhos!”. Ainda em seu poema “A Esperança”, o poeta enfatiza: “A Esperança não murcha, ela não cansa, / Também como ela não sucumbe a Crença, / Vão-se sonhos nas asas da Descrença, / Voltam sonhos nas asas da Esperança”.

É nesse estica e encolhe que o acordeom tece sua melodia. Noto este viver como Rossana Abbiati Spacek o declara em “Sentimentos vários” (2014, p. 19-20): “Força que move / Independe / Da vontade, do sonho, do medo… / A vida toma seu rumo, apesar / Da dor, / Do riso, / Da fé. // Independe / Da consciência, da certeza, do tropeço... / As pessoas serão corrompidas, apesar / Da fome, / Da luta, / Da morte. // Independe / Do sol, do frio, da chuva, / O amor floresce / Em meio aos corações sofridos, apesar / Da repulsa, / Do abandono, / Do desprezo. / Independe / Do ar, do mar, do céu, / Nossas retinas registram o pôr do sol, apesar / Da poluição, / Das queimadas, / Da desesperança. / Ainda que se tenha / O ar, o sol, a consciência, a vontade, / A humanidade precisa despertar / Desse sono danoso e despreocupado / Que a mantém refém / De desejos deturpados e, / Pela visão embotada, / Não consegue acreditar / Na força que move, / que aquieta, / que liberta, / Porque está dissociada dos valores econômicos / Já tão arraigados na maioria de nós. // Há de se aquecer nos abraços, / De se confortar nos ombros amigos, / De se falar apenas o que for frutificar... / Viver é uma aventura [...]”. Voar é preciso, para que se alcance o amanhã. Queremos o horizonte e não a caverna. Queremos o ar, e não a gaiola.


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