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29/04/2021 às 10h40min - Atualizada em 29/04/2021 às 10h40min

Genialidade

IVONE ASSIS
Aprendi com Sírio Possenti (1998, p. 49) que “a crítica das piadas não é uma crítica nova”, afinal, a novidade mora na contação, em sua nova ação e cenário, a cada vez que se reconta uma piada extrai-se algo novo do seu contar. Ou seja, a piada vem, a cada exibição, com nova roupagem. Segundo Eni Orlandi (1988, p. 37), a “leitura é concebida como o momento crítico da constituição do texto, momento privilegiado do processo de interação verbal, uma vez que é nele que se desencadeia o processo de significação”. No humor (e em alguns outros gêneros), podemos entender como constituição do texto a ação, o ato de contar.

O estudo da história cultural do humor vai além da investigação do desencadeador do riso nas pessoas, quer-se saber a razão e a aplicabilidade social de tal riso, visto que o uso social de um humor tende a revelar a cultura caricata de uma ocasião. Fato bem fácil de se observar nos quadrinhos dos jornais, cujos quadrinhos, geralmente, representam episódios do cotidiano, com toda a crítica do momento igualitário.

Há quem estude o humor a partir da piada, e há quem o faça em ordem inversa, ou seja, investiga o que provoca o riso, como podemos conferir em Manfred Geier, em sua publicação “Do que riem as pessoas inteligentes”. Essa obra busca saber o que faz pessoas notáveis rirem, tomando como base o emudecimento dos filósofos a esse respeito. Eu poderia encher esta coluna de proposições sobre o objeto, mas meu desígnio é relatar o próprio fato, e não o teorizar.

Nesta semana, em meio a um turbilhão de acontecimentos, uma família inteira encontrava-se, de prontidão, à espera de um telefonema que anunciasse boas-novas. Os mais velhos preferem o encontro, a notícia olho no olho, enquanto os mais jovens trocam mensagens por WhatsApp, a todo instante, no afã do imediatismo, para estarem à frente de qualquer assunto, não importa quão rasa seja a sua informação. De repente, ouve-se um chamado pouco usual, mas, sim, é um celular. De quem será? Onde estará? Chamou até desligar, sem que ninguém o encontrasse. Logo, recomeçaram os chamados. Então, veio a anciã, a mais idosa da turma, já em seu último quarto de um centenário – com seu caminhar vagaroso, impregnado da certeza de que o tempo não aguarda autorização de ninguém, pois faz o seu próprio curso – pegou um aparelhinho antigo, nunca visto por muitos da geração alpha, e com voz serena, atendeu: / – Alô! / Provavelmente, o emitente, o outro lado da linha, tenha reclamado pela demora, ou pelo não atendimento ao telefone, no exato instante em que chamou, ao que a anciã, placidamente, respondeu: / – Meu telefone é pequeno demais, não cabe muita conversa... / A gargalhada estrondou na casa. Os mais rasos viram o humor no momento... no jurássico aparelho, e outras incredulidades de sua geração. No entanto, as mentes pensantes riram largamente, talvez, nem tanto pelo “cala a boca” inesperado, que anunciava que aquela pessoa estava sem tempo para conversa fiada, mas, sim, por se tratar de quem era, e a resposta tão súbita e certeira. Uma coisa é fato, ficou evidente para todos que “boca fechada não entra mosquito”.

Vejamos o poema “No meio do caminho”, de Drummond. Tem-se nele um refrão, uma repetição de substantivos, um poema de caráter reflexivo, uma estranha construção verbal, pensada e elaborada, com o primor de quem sabe fazer uso da palavra. O poema aponta um caminho, enquanto vai desnudando um ciclo, com seus altos e baixos, entre tropeços e possibilidades. Chovem teorias a seu respeito, chovem desgostos e gostos. Mas, na rasura de meu entendimento, chovem humor e crítica social. Pequenas metáforas, grandes histórias. Todavia, entre o enigma desse poema e o “aforismo” da resposta da anciã, ao telefone, encontramos, sem sombra de dúvidas, a genialidade.



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