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02/03/2021 às 08h15min - Atualizada em 02/03/2021 às 08h15min

O BBB da canção

ENZO BANZO
"Quando eu cheguei aqui tudo era mato", poderiam dizer alguns dos grandes nomes da nossa canção popular surgidos na segunda metade da década de 1960. Era o tempo em que a televisão começava a compor o cotidiano da telespectadora gente brasileira, sucedendo o percurso iniciado pelo rádio na década de 1930, desde quando a vida da gente tornou-se conectada a algum tipo de mídia tecnológica.
 
Naqueles anos, sobretudo entre 1965 e 1968, o Big Brother da TV brasileira era filmado nos festivais da canção, em que se travavam batalhas entre a plateia aos berros de aclamação ou vaias. Ali surgiram para o grande público, sob a forma de astros de TV, Elis Regina, Chico Buarque, Nara Leão, Roberto Carlos, Caetano Veloso, Gilberto Gil, dentre tantos outros; e se esses nomes até hoje são o que são, é certo que, para além da inegável competência, isso se deve à possibilidade de exposição midiática da qual usufruíram.
 
E o parquinho pegava fogo, a ponto de o cantor Sérgio Ricardo quebrar o violão abandonando o palco, ou de Chico Buarque e Tom Jobim serem vaiados (cancelados?) com a belíssima "Sabiá", ou, ainda mais, de Caetano Veloso esbravejar seu famoso discurso contra o a plateia e o júri, de tapetes puxados pela provocativa "É proibido proibir": "mas é isso que é a juventude que quer tomar o poder?... Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos... Deus está solto". Havia torcida para essa ou aquela estrela, eram construídas rivalidades entre os artistas, embora ali se exibisse obras e interpretações, muito distante de alguma exposição de intimidade, como é a marca do nosso século XXI.
 
Tudo isso passou, e o saldo foi o de um apurado e diverso cancioneiro edificado nas telas de TV, que continuou a se delinear nas décadas seguintes em papel destacado, embora não mais central, nas trilhas de novela e programas de auditório, além das ondas do rádio que jamais cessaram. E nessas possibilidades de difusão midiática, compusemos nossa educação sentimental: nos emocionamos diante das canções que tocavam no tempo da nossa infância (eu mesmo fico tocado se ouço a minha trilha de menino, de "Galopeira" a "Bichos Escrotos").
 
Fato é que hoje tudo é muito mais disperso, trilhas de guetos e nichos de acordo com aquilo que escolhemos acompanhar, ou somos levados a seguir, no mundo real ou virtual. Ainda assim, fico feliz quando alguma canção vaza na grande mídia, alcança longe e quebra fronteiras.
 
Veja-se o caso de "Deus me proteja", do compositor Chico César, cantada de improviso por uma participante do atual BBB da Rede Globo, não por acaso paraibana como o autor. Bastou a voz amadora da bigsister Juliette entoar a canção para que a faixa chegasse às mais tocadas da semana no Spotify, levando o nome do compositor aos topos do Twitter.
 
É bom que vaze uma canção assim, um forró doce que entoa achados de sabedoria poética: "Deus me proteja de mim, e da maldade de gente boa, da bondade da pessoa ruim". Enquanto gente pra lá de ruim desgoverna e mata evocando um tenebroso Deus, é bom que se veja o poder de uma canção em sintetizar as contradições humanas.
 
E olha que Chico César deve ter vivido um mês de glória, apesar das agruras que nos mazelam a todos, não só pela inserção desprogramada no programa de maior audiência do país, mas pelo grande número de composições suas cantadas por Maria Bethânia na primeira live da cantora. Ser cantado por Bethânia é o apogeu para um criador de canções, e falo como um deles: imagine ter seus versos recriados na potência daquela interpretação.
 
Mas a força das canções está tanto no canto supremo de uma deusa como Bethânia, quanto nos ouvidos atentos de juliettos, juliettas e juliettes, que as ouvem e as incorporam em suas vidas, suas histórias, seus sentimentos e sentidos. O canto é para a voz de toda a gente, e uma música que alcança a multidão dos ouvidos ganha coro e corpo, vence o BBB que lhe interessa: cantar a que veio, estar no mundo.


Esta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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