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25/02/2021 às 08h00min - Atualizada em 25/02/2021 às 08h00min

Silêncio da rua

IVONE ASSIS
A noite de terça-feira, de 23 de fevereiro de 2021, foi marcada pelo assombroso silêncio da rua. Acostumada ao frenético som dos motores, sobretudo das terríveis motocicletas, e ao zum-zum-zum de pessoas, fiquei um pouco surpresa com o silêncio iniciado com o pôr-do-sol e firmado por volta das 22h. Era o anunciado toque de recolher. Sabemos que é temporário e foi previsto por uma boa causa, mas não deixou de ser intrigante... diferente. Aquilo que foge da rotina, naturalmente, causa-nos estranheza. Foi um momento para reflexão.

Fiquei a pensar nos silêncios que invadem as pessoas. Medi o quanto deve ser espantoso o silêncio daqueles que são amordaçados pelo sistema no qual vive. Pensei no quão importante é a liberdade. Vieram-me à mente dois momentos:

Primeiro, uma frase de Josh Billings que diz: “Solidão: um lugar bom de visitar uma vez ou outra, mas ruim de adotar como morada”. A solidão é, muitas vezes, um refúgio. Geralmente, um silêncio interno. Mas, é um caminho melindroso, o qual deve ser breve, sempre curto, para não se transformar em mazelas. A solidão é um “autosilêncio” a que o indivíduo se submete.

Depois, o segundo momento foi marcado por uma fala da ministra Carmen Lúcia, disponível à página 178 da R.T.J. (Revista Trimestral de Jurisprudência), v.213/2010, que diz: “Os dispositivos afrontam, de modo direto e objetivo, os princípios e regras constitucionais relativas ao tema. São incompatíveis com a Constituição de 1988, e tudo o que há de deixar – para os que teimam ou não conseguem esquecer – são as memórias amargas de tempos em que a mordaça, não a liberdade, prevaleceu e fez-nos calados e surdos, porque não havia quem nos pudesse falar com liberdade, nem de liberdade”.

Ambas as frases abordam o silêncio. A primeira, um silêncio vinculado à solidão do viver, enquanto a segunda traz um silêncio amordaçado ao sujeito. Ambos, terríveis e diferentes. Estamos diante de um sentimento de vida, atrelado ao meio familiar e social, em que o sujeito pode se reconstruir, e, depois temos um silêncio imposto pelo sistema, no qual, pois mais que o sujeito aspire a liberdade, só lhe é ofertada a solidão. Nem um deles é bom, por isso é preciso buscar suas (des)razões, para estruturar futuros caminhos melhores, os quais não levem a esse fim. O silêncio temporário imposto também é fruto de ações desencadeadas, por isso é hora de autorreflexão de cada um, a fim de evitar novos iguais no amanhã.

Mas, nem todo silêncio é sôfrego. Há silêncios libertadores. Mario Quintana, à página 124 do livro “A vaca e o hipogrifo” (2012), publicado pela Objetiva, relata: “Os poetas não são azuis nem nada, como pensam alguns supersticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação. O de que eles mais gostam é estar em silêncio — um silêncio que subjaz a quaisquer escapes motorísticos ou declamatórios. Um silêncio... Este impoluível silêncio em que escrevo e em que tu me lês”.

Este mesmo Quintana, nessa mesma obra, à página 140, escreve: “Sempre me impressionou esse estranho caso que acontece no silêncio da noite e no interior das enciclopédias: a promiscuidade forçada das personagens dos verbetes, as quais, sem querer, se encontram alfabeticamente lado a lado... Não fosse a minha salutar preguiça, eu escreveria um novo ‘Dialogues des morts’. Deixo aqui a ideia a quem quiser aproveitá-la”.

Como muito bem escreveu a psicóloga Lia Clerot: "Quando não associada à tristeza, a solidão pode ser um momento para refletir, cuidar de si e da mente. É importante estar só". A vida urbana nos traz todos os silêncios, a atitude do cidadão é que irá direcionar a qual silêncio usar. Enquanto isso, vamos absorvendo o noturno silêncio da rua.



Esta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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