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02/02/2021 às 08h00min - Atualizada em 02/02/2021 às 08h00min

Engavetado

ENZO BANZO
Rondo aquele escrito guardado na gaveta, que não é uma gaveta, é uma pasta de computador há muito não aberta. Aquele escrito fala? Parece que fala porque tem ares de quem não gosta de ficar calado ali dentro. Aquele escrito, se foi para ficar engavetado, então por que foi escrito?

Um belo dia ou noite adentro, vagueando na poeira digital, algum arquivo esquecido dá uma discreta piscadela: me tira daqui! O texto-canto-quieto, lá encostado, já nem lembro quando foi que te pari, tô nem aí?

Treme a gaveta. Não calada, mas emudecida. Chacoalha de lá, sacode de cá. Vem uma mão que segura na gola da camisa, um olho que encara no fundo. Eu, hein.

Calma aí, meu caro escrito, o senhor não é assim o rei da cocada, não é bem assim, escreveu, leu, falou, cantou, tá no mundo, livre e leve, denso e solto, aplausos. É preciso melhorar esse seu penteado, cortar uns adjetivos, capturar alguns sinônimos mais sonoros, ler de cima embaixo, mirar a sua cara, para um e outro lado.

Será que você faz mesmo tanto sentido assim? Tem um botãozinho aqui, chama-se "delete". Não brinca que eu aperto, você some, tchau, babau. Será que eu desapareço também?

Do lado de cá sou exigente com você, minha prezada anotação. Você não passa de um mero rascunho, e aí está toda sua beleza de vir a ser. Veja que bonito, ser assim, pura potência, mistério a ser lapidado, bruta pedra a ganhar aparo nas arestas e incontáveis novas vidas nas leituras de quem quer que seja.

Porque eu, dona palavra, não sou assim seu dono não, meu trabalho é descobrir o que você tem a me dizer, e, sobretudo, como quer me contar, e quando suspeitar que aquela forma passou de esboço a fim-final, lançá-la ao mundo para que outros descubram o que eu não ouvi, mas tava ali.

Aquele nosso amigo, o Carlos, dizia que brigava com você, ora veja, e não te largou a vida inteira, ficava ali brigando, será que gostava de sofrer aquele anjo? Eu aqui querendo ficar quieto no meu canto, e você me chamando pra briga, oh sílaba, me cantando pra que eu ache o seu encaixe. Penetra surdamente...

É por isso que você tá me sussurrando aquela canção do Sérgio Sampaio, não é mesmo? "Um livro de poesia na gaveta não adianta nada... Aonde vai o pé, arrasta o salto, lugar de samba-enredo é no asfalto".

Tô te entendendo, meu caro arquivofechado.docx. Chega de fugir da briga, é o que você me diz? Não tem paz sem essa briga, aquele sopro pintou porque estava vibrando no universo e foi pescado, vou fingir que não? Tampar o ouvido com medo da sereia?

Prometo pensar no seu caso, meu rabisco. E continuar distraído, ouvido aberto pro acaso. Viver é a procura de transmutar o que não se diz em algo que tenta dizer o indizível. Algum som, movimento, objeto, imagem ou outra coisa que dispense o verbo. Pode ser você também, amada palavra, acumulada e não usada aí no fundo dessa gaveta mofada. E que mesmo com tanta gaveta insiste em novos acenos, não sossega.

Vou ficar por aqui em silêncio, para te ouvir e para te dizer. Tem barulho demais por aí e ando com pena de como te tratam mal.

Mas não é porque estou contrariado que vamos deixar tudo ao contrário. Aliás, vamos fazer o contrário do contrário. Nadar contra o rio. Chegar na fonte, beber com as mãos. Mergulhar no fundo do profundo. Transformar o perdido num achado.


*Esta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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