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05/01/2021 às 08h00min - Atualizada em 05/01/2021 às 08h00min

Poesia para não servir

ENZO BANZO

Em um bate-papo à distância sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade, entre o mestre cantor José Miguel Wisnik e o pensador indígena Ailton Krenak, o primeiro associa o título do mais recente livro do segundo — "A vida não é útil" (Companhia das Letras, 2020) — à ideia da poesia como um inutensílio, difundida e defendida pelo polaco poeta Paulo Leminski, que quer dizer, noutras palavras, "a poesia não é útil".

Como assim? Uma leitura desavisada pode compreender essas densas e condensadas afirmações como uma depreciação da vida e da poesia. A perspectiva é inversa: o que aqui se questiona é esse papo de que tudo tem que servir para alguma coisa; de que é necessário ser útil para ser necessário; de que se não servir para nada, então não serve. A flecha das palavras mira o utilitarismo atribuído à vida e à arte, contrapondo uma visão que busca dar um sentido raso e prático ao que é puro mistério, para além de qualquer sentido.

Escreve Krenak em seu livro: "a vida é fruição, é uma dança, só que é uma dança cósmica, e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária"; ou ainda: "nunca vai ocorrer a um peixinho que o oceano tem que ser útil, o oceano é a vida".

Fala Leminski, no documentário "Ervilha da Fantasia", de 1985: "a única razão de ser da poesia é que ela faz parte daquelas coisas inúteis da vida que não precisam de justificativa porque elas são a própria razão de ser da vida". A vida e a poesia, a poesia e a vida. A vida é a poesia, a poesia é a vida. Servir, pra que? Estamos aí, aqui, para não servir.

"Stop./ A vida parou/ ou foi o automóvel?". Krenak relembra o poema de Drummond, escrito lá se vão noventa anos. Meio poesia, meio profecia. A vida é o automóvel? A que engrenagem estamos presos, conduzindo a nossa roda-rota a serviço da própria engrenagem? Cobra que come o próprio rabo, sem ter fim.

Ano 21 do século 21. A roda girou, mas os parafusos não parecem firmes. Foi a vida? Foi o automóvel? A vida não é o automóvel, nem o barco furado sacudido pelo capitão que quer lançar os tripulantes ao mar morte. Maior é o oceano.

Sem servir, a poesia pode flechar e conciliar. Krenak, que não se cansa de escancarar o nosso ridículo diante da pequenez com a qual conduzimos o grandioso que é a vida, recebe de braços abertos o anjo torto Drummond, um quase conterrâneo das margens do Rio Doce. Olhando para as mesmas montanhas e rios devastados, Krenak sabe que seu mundo não é o mesmo de Drummond, o que não impede a incorporação do outro pelo um.

Da ultraurbana São Paulo, Wisnik conta como compreendeu o mundo do gauche Carlos ao visitar a interiorana Itabira, diante da cratera onde era a montanha de ferro do menino do começo do século 20. Essa revelação da poesia na vida motivou José Miguel a escrever o seu "Maquinação do mundo: Drummond e a mineração" (Companhia das Letras, 2018). O poeta e o planeta, a poesia e a vida.

Drummond, Wisnik, Krenak: outros tempos, outros lugares, outros mundos. Ainda assim, há mundos no mundo que os unem: a vida, passo leve diante e dentro do profundo; a poesia que, ao não servir para nada, sai do automático: é a própria vida.

Vida que está aí, está aqui, muito além de nós; vida que passa por nós, nos atravessa e  seguirá em tudo que é vivo, como reflete Ailton Krenak. Assim como a vida, e de dentro dela, a poesia vive para não servir, para vir a ser, como conclui José Miguel Wisnik na conversa entre os sábios dos diferentes mundos.

Eu sei. Podia ser bem melhor, e será. Sem servir, a poesia canta o vir a ser da vida: é bonita, é bonita e é bonita.



*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.


 

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