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22/10/2020 às 08h00min - Atualizada em 22/10/2020 às 08h00min

Deleite

IVONE ASSIS
O assunto da semana tem sido o repúdio ao MEC, quanto às livres adaptações dos clássicos literários. De um lado, o Ministério se defende, dizendo que professores, críticos e a Unesco aprovaram; do outro, professores, escritores e críticos da literatura repulsam. No meio do fogo cruzado está a criança (o leitor, palavra-chave da história), que irá consumir tal produto. Para mim, após as escolhas, cabe uma triagem com a criança, o professor e o psicólogo, juntos. Pois, literatura infantil não é programa de entretenimento, e sim, cultura e ensino. Adaptação é quando há pequenas interferências, sem tirar o mote. Fora isso, temos outra história, e neste caso a literatura já disponibiliza da intertextualidade, para que, estudiosos ou não, alcancem o elo que há nas histórias. A obra se tornou um clássico justamente pelos elementos que ela apresenta, havendo mutilação nisso, o que teremos serão alusões ao original, meras referências que resgatam os textos-fonte. Penso que o MEC deve se encarregar de distribuir os originais impressos, como referência, e os agregados (novos títulos e autores) como releitura paradidática. Não há mal algum em o Governo adquirir obras dos autores contemporâneos em concomitância com os clássicos e, assim, ampliar as possibilidades de trabalho literário dos professores, na certeza de que um não substitui o outro.

Há cerca de 20 anos, eu pesquiso sobre Chapeuzinho, em que, criei também versões aproximadas, com base no original, porém sempre mantive a análise do original. Um não empobrece (e nem se confunde com) o outro.

Muitos criticam a inexistência da morte, por exemplo, em prol de um politicamente correto implantado. Mas sabemos que a morte e o medo são elementos importantes nos contos infantis. Na Chapeuzinho Vermelho da versão “Conta pra mim”, da Política Nacional de Alfabetização, do MEC, o lobo, em vez de esfolado, cai no rio para nunca mais voltar. Pode ser que o arquétipo da morte esteja aí, mas pode ser que a fuga – tão em voga – também esteja aí, reforçando a impunidade. A menina, ao ser resgatada, tem a palavra “medo” (aterrorizada) substituída por “ufa”, dando um ar de “naturalidade”, de “acontece”, que não se encaixa no propósito do conto de Perrault. Outro ponto está no caçador passando ao acaso (ausência da lei), enquanto no original o acaso não existe, o que há é uma perseguição. A criança precisa ter conhecimento e experimento do sim e do não, para que ela amadureça. Não se pode tudo. As decisões não podem ser tomadas afoitamente, faz-se necessária a moderação, para evitar que consultórios psiquiátricos e psicológicos fiquem abarrotados de crianças, que poderiam estar brincando, e jovens, que poderiam estar namorando. A nova versão deixa um sintoma de que sempre haverá um escape, e de que tudo vai dar certo, não importa o que se faça. Mas, a vida não é um conto de fadas.

“O caçador entrou na casa, viu o lobo roncando na cama e abriu o barrigão enorme do bicho. De lá saíram a vovó e Chapeuzinho: / — Ufa! Obrigada! Estava tão escuro dentro da barriga do lobo! — disse a menina. (p. 12) // O caçador encheu a barriga do lobo com pedras e a costurou bem. Quando o malvado acordou, saiu tropeçando e caiu no rio, para nunca mais voltar. (p. 13) // A vovó, Chapeuzinho Vermelho e o caçador ficaram aliviados e felizes. (p. 14). (CHAPEUZINHO, CONTA PRA MIM, 2020).

Evitar o retrocesso cultural é aplicar novas tecnologias, sem perder a referência, como têm feito as Artes com as telas vivas de Caravaggio, recriadas pelo grupo italiano Ludovica Rambelli Teatro. Ou os anjinhos de Peter Rubens que, em um show de tecnologia, fez com que a arte flamenca ganhasse vida e saísse da tela a encantar os espectadores, em Bruxelas.

A literatura nacional tem se afogado. Faltam pescadores e chefs. O alavancar literário não se engessa em adaptações e impressões, muito menos em ebooks sem visibilidade. Faltam pingos nos is. O livro pede ação, para evitar o delete e alcançar o deleite.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
 
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