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18/08/2020 às 17h56min - Atualizada em 18/08/2020 às 17h56min

Beleza do erro

ENZO BANZO
Saudade danada do palco. Saudade tanta, que me peguei sentindo falta de errar durante um show. Errar no palco, na frente de todo mundo, a galera da banda olhando de soslaio, como assim, meu chapa? O erro revelador de humanidade. Um acorde montado uma casa acima do braço do violão, trocar um verso de lugar, dar branco e não entrar na hora certa. Driblar o acaso e encontrar a solução, quase sempre improvisada. Um erro no palco é capaz de ressoar como obsessão por horas e horas e dias. Acaba o show e você acha que o que acabou foi o mundo. Aí vem a galera dar abraço, celebrar, e a gente ali pensando: como assim, você não viu?
 
A live do Caetano me fez lembrar essa beleza do erro. Ao final da primeira música, uma espécie de pedido de desculpas: "a gente quase não ensaiou". E ao longo da apresentação, a insistência em esclarecer que ali não se tratava do primor dos grandes músicos de execução perfeita, como Gil e Milton. Enquanto Caetano demorava para encontrar o acorde de uma certa canção, me peguei gritando no sofá da sala: é Si Menor, Caê! Em alguns segundos, soa o Si Menor. É doce a ilusão de ser ouvido.
 
Em se tratando de Caetano, é bom destacar que os grandes compositores de canção, via de regra, não costumam ser músicos de excelência, no sentido da execução instrumental (embora existam). Jogam para o conjunto, são capazes de construir enlaçamentos de melodia, letra e canto que vão além da perspectiva estritamente musical. Encontram soluções e as encaixam na trama. Como diz Luiz Tatit, o cancionista é um malabarista. Daí, pra fazer disso uma boa execução, sem deixar a peteca cair, haja treino, haja ensaio.
 
Em minha experiência pessoal, sobretudo no Porcas Borboletas, vivi incontáveis vezes a experiência do erro, meu e dos comparsas (é isso que dá formar banda de poeta, filósofo, artista plástico). No momento da criação, as composições pintam rapidamente quando nos sintonizamos em algo que pode ser denominado um ritual. Reconhecemos, de imediato, a instauração da ordem no caos, ou do caos na ordem, o que talvez seja mais o caso. O problema é recuperar o rito, que é, por natureza, momentâneo. Daí, tome ensaio, ensaio e mais ensaio, o que pode proporcionar uma execução correta e precisa, embora não garanta o efeito arrebatador. Para nós, o jeito para isso acontecer sempre foi buscar a verdade do ritual a cada execução.
 
Certa vez, ensaiando com Paulo Miklos, ao pedirmos para tocar novamente a música "A verdadeira Mary Poppins", do repertório titânico, ele ressalvou: "essa não dá pra cantar empolgado mais de uma vez". Ou seja, não dá pra repetir o rito. Não basta estar ensaiado, é preciso empolgação. Aí tudo vibra em sintonia, o rito é palco e é plateia, uma coisa só; a chance do erro é mínima, ainda mais se estamos embalados em uma sequência de shows. Ainda assim, o erro pode vir, revelando a nossa frágil humanidade na tentativa de construção de um caos ordenado.
 
Imagino que Caetano, além da falta de ensaio, tenha sentido a dificuldade de adaptação com o rito-live, diferente do rito-palco, do rito-ensaio, do rito-programa de rádio e de TV (e contornou com graça essa limitação). Como nos desensinou Oswald de Andrade, na arte e na vida, é preciso incorporar "a contribuição milionária de todos os erros". Esse erro é a parte da arte que nos joga de volta na vida, para dali nos reconduzir à sintonia ritual do acontecimento artístico. Errei, erramos, seguimos. E por enquanto, o jeito é inventar novos erros e ritos, para que nossos corpos persistam vivos e vibrantes neste estranho lugar em que se transformou nosso planeta.




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