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09/06/2020 às 08h09min - Atualizada em 09/06/2020 às 08h09min

Pra que a gente siga gente

ENZO BANZO
Quando a gente era gente do sec. XX, achava que no sec. XXI o mundo seria todo outro, com tecnologias impensadas e injustiças superadas. Do alto da nossa utopia, não imaginávamos que, em pleno 2020, ainda fosse preciso lutar contra tanto absurdo que vigora e revolta. Diante dos horrores diários, pegamo-nos a nos perguntar o que fazer, pra que a gente siga gente. E eis que pinta a arte. A emergência cultural, tema e prática de movimentos, leis e editais, clama não só pela cultura em seu viés de setor econômico de trabalho, mas também por sua urgência em nossa vida social e pessoal. Valha-nos as lives. No meio desse tufão assustador, num vasto mar de navio desgovernado, emerge gente criando e absorvendo arte: sobrevida. Com o olhar embaçado pelo nevoeiro, aponto o ouvido para alguns trabalhos artísticos publicados sob a égide pandêmica, uns produzidos e lançados nesses tempos, outros gerados antes e agora nascidos.

Adriana Calcanhotto foi uma que aventurou-se em produzir um álbum completo sob os contornos da quarentena, ambiente e tema de seu novo disco, "Só". A cantora tem apreciado compor a sua lírica refinada sobre a batida do funk, o que não surpreende quem já teve os olhos marejados ao ouvi-la cantar o "fico assim sem você" de Claudinho & Buchecha: "a solidão é meu pior castigo". Na batida do funk, o álbum se inicia com a poética "Ninguém na rua"  − e quem dera, de fato, na rua não houvesse ninguém. Haja ou não, o que se vê é um mundo  sombrio: "nem mesmo a luz da lua". O auge do disco é o seu mais funk dos funks, "Bunda Lê Lê", em que ao rebolado do ritmo se mistura o movimento estático da vida solitária: "senta e bunda e lê, lê".

Noutro canto, quem está só, no corpo mínimo e completo da voz e violão, é o compositor Luiz Gabriel Lopes, que lançou o EP "Presente". Mas, nas canções, a ideia de solidão é contraposta à de comunicação direta, um canto que fala de olho no fundo do olho de quem ouve. A faixa de abertura tematiza um amor pouco cantado no campo da canção, o da figura da irmã: "a gente veio pra esse mundo pela mesma porta". LG está afiado na arte de cantar como que para alguém, ao seu voo solo é imprescindível a outra pessoa. As quatro canções do EP orbitam sobre essa matéria de conexão pela via do presente ofertado, alívio ao duro presente-tempo.

Por aqui, em Uberlândia, a efervescência emerge e urge. No final de semana rolou o Festival Mutamba, com gente de cá e de vários arredores, em um tempo-espaço outro no qual dançamos a mesma balada sem sair de casa. A Cena Cerrado Discos, uma das produtoras do evento virtual, também lançou novidade, o álbum "Sobrevida", da banda Cachalote Fuzz. Dentre as faixas, o grupo nos concedeu a graça de uma canção que já nasceu um clássico, a divertidíssima "Bar das Famílias", homenagem a um dos points da madrugada uberlandense. Em batida new wave anos 80, a peça dançante (que já tem clipe não oficial com coreografias da turma do Chaves) apresenta colagens de papéis descolados de paredes que a gente tanto viu por aí, quando era tempo: "seja bem vindo / proibido som automotivo / cenas amorosas, melhor não".

Por fim, uma pérola valiosa vinda daqui é o rap-videoclipe "Encosta", de Davi The Producer, Natania Borges e Vaine. A gravação foi feita no início do ano − tão pouco tempo e tanta coisa mudou, veja-se o título "Encosta" e o começo do vídeo, com um cumprimento de chegados que hoje não ousaríamos praticar. Mas há o que não mudou, ante o que é preciso ser anti e antídoto. O grupo de artistas consegue conjugar o papo sério à entrega do corpo pela dança, sob o tempero da delícia do nosso sotaque. Envoltas na batida acelerada, as rimas do rap de Vaine e a pungente expressão corpovocal de Natania nos conduzem em seu rastro e rasgam o verbo: "no meu black não encosta não".



O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.


 
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