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12/05/2020 às 10h38min - Atualizada em 12/05/2020 às 10h38min

O letrista equilibrista

ENZO BANZO
O letrista é um sujeito escondido com a palavra exposta. Em especial, aquele que se especializa nessa atividade do ramo da canção. Não aparece cantando, não aparece tocando. Seu nome fica lá na ficha técnica, quem quiser que procure. É capaz de construir grandes obras, de enorme repercussão, mantendo-se como figura discreta. Um dia, quando morre, vira notícia, e então descobrimos a pessoa por trás das palavras. Que seguem vivas.

O compositor e estudioso Luiz Tatit compara o cancionista (termo por ele criado) a um malabarista, que equilibra o todo da canção reunindo texto, melodia, entoação, interpretação. Pode-se emendar que, diferente de um malabarista (que tem tudo em suas mãos), o letrista é um equilibrista que caminha sobre a melodia: a cada passo uma sílaba, para não cair. Um equilibrista quase sempre bêbado, entre o prazer da parceria e a precisão da métrica.

Gênio desse ofício foi Aldir Blanc, que na semana passada nos deixou aos 73 anos, uma entre as tantas milhares de vítimas da pandemia que nos assola. Li por aí gente dizendo que sua obra mereceria estar escrita em livro. Eu diria que sua obra poética dispensou o papel, preferindo, ao invés do solo seguro da página fixa, nascer se equilibrando na melodia, para daí ganhar a voz do intérprete, do coro e da memória coletiva. A grande maioria das letras de Aldir Blanc foi composta sobre músicas criadas previamente por um de seus parceiros: João Bosco, Guinga, Moacyr Luz, Maurício Tapajós, Cristovão Bastos. Jamais teriam a mesma forma, sequer existiriam sem a companhia amalgamada da melodia e do canto.

Aldir Blanc era letrista, e tinha orgulho de dizer que era compositor popular. Carioca, nasceu no Estácio, viveu na zona Norte do Rio de Janeiro, construiu sua personalidade no meio do samba, do carnaval e da vida boêmia. E também dos livros. O que trouxe disso tudo, transformou em sua poesia. Por exemplo, em "Dois pra lá, dois pra cá", bolero em parceria com João Bosco gravado pelo parceiro e por Elis Regina: Aldir contava que a letra ficou dias sem solução, até que jorrou de uma vez. E lá estava ele, bêbado num táxi, sem papel para anotar, tendo que equilibrar o texto na memória ébria até chegar ao caderninho no apartamento. Nessa canção, como em tantas, Aldir retira a palavra poética de um certo campo sublime, de aura e de nobreza: "No dedo, um falso brilhante / Brincos iguais ao colar / E a ponta de um torturante / Band-aid no calcanhar". No whisky da poesia, Aldir Blanc gostava de misturar guaraná.

Equilibrar as palavras na melodia é jogo que abre possibilidades impensadas para o papel. Eis o ofício do letrista. Na mais emblemática de suas composições com João Bosco, "O bêbado e a equilibrista", algumas expressões parecem cambalear. Vejamos (ouçamos) a palavra "louco". Cantada em um ponto intermediário do desenho melódico, pode estar dizendo: "que sufoco louco" (referindo-se ao sufoco); ou "louco, o bêbado com chapéu-coco" (qualificando o bêbado); ou, simplesmente, louco! (como quem diz, "que loucura", diante da cena). Uma só palavra, balançando para um lado, para o outro e para o centro, no meio do canto.

Quando alguém morre, parece que a vida, liberta do presente, passa a ser a sua vida toda, simultaneamente. Aldir morreu no dia 4 de maio, mesma data de falecimento de Noel Rosa, em um intervalo de 83 anos. Viveu na mesma zona norte carioca suburbana que Noel, anos depois. Carregava um certo sabor noelino em muitas de suas criações, como nas bem humoradas crônicas de crises conjugais "Incompatibilidade de gênios" e "A nível de". A obra de Aldir Blanc, como a quase centenária obra de Noel Rosa, seguirá viva na voz e no canto, respondendo ao tempo: "ele aprisiona e eu liberto".



O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.


 
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