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28/04/2020 às 08h59min - Atualizada em 28/04/2020 às 08h59min

A sintonia de Moraes

ENZO BANZO
Quando alguém se vai, a vida delimitada entre duas datas, de chegada e de partida, parece ter completado o seu percurso em um desenho de início e fim. A existência e sua finitude: eis o mistério do planeta.
Talvez não seja bem assim, veja o caso do Moraes, que nem sempre foi Moreira. Aquele ritmo da mão direita no violão parece guiado por uma ancestralidade muito anterior a ele próprio, sendo aquilo que só ele foi. Algumas de suas canções (quase sempre compostas em parceria) entraram para o seleto grupo das que soam como se tivessem existido desde sempre, sem dono na voz da coletividade. É só lembrar e cantarolar: "eu ia lhe chamar enquanto corria a barca", "pombo correio voa ligeiro", "nas trincheiras da alegria o que explodia era o amor". Sendo aquilo que existiu desde sempre, logo intuímos que para sempre existirá.
Não me lembro da primeira vez em que vi ou ouvi Moraes Moreira (parece que sempre existiu); tinha uns discos em casa, pintava às vezes na TV, aquele bigode e cabeleira inconfundíveis. A sua composição que mais marcou os anos 1980 da minha infância foi uma canção romântica e radiofônica (caso mais para exceção do que para regra em sua carreira), e que tinha como tema metalinguístico o próprio fato de ser uma canção romântica e radiofônica: "Sintonia", composta em parceria com Fred Goes e Zeca Barreto, que foi trilha de novela e penetrou nas ondas do rádio, para nunca mais sair. Hoje, nas plataformas digitais, é ainda sua obra mais executada. Reouvindo, fica claro que Moreira dominava a arte de compor uma canção, muito a seu modo.
A faixa começa em tom menor, flertando com o universo das músicas de amor que tocam no rádio, não só no tema, mas no jeito de cantar (limpo e sincero, com delicioso sotaque baiano), no arranjo e condução da melodia, cantada em súplica amorosa: "escute essa canção que é pra tocar no rádio, no rádio do seu coração". O jogo poético será todo desenvolvido em torno da analogia entre o amor e o rádio, sintetizada no título: a sintonia das frequências radiofônicas, a sintonia entre os amantes. Moraes Moreira sempre foi compositor mais do campo da celebração que do lamento, com um olhar solar e positivo sobre a vida que, até nessa canção de dor amorosa, é capaz de virar o jogo. Após invocar a negação do ciúme (que não tem remédio), a melancolia do tom menor é convertida no conforto da conjunção e do entendimento. O tom passa para maior, e a letra segue junto: "e agora sim, aqui pra nós". Daí pra frente, tudo é a celebração emotiva do vai e vem da vida, do amor, da música, do mar, do rádio.
Se Moraes houvesse composto e interpretado somente essa canção, já teria garantido seu espaço na história de nossa arte. Mas o velho novo baiano era, como ele mesmo cantava, "um documento da raça pela graça da mistura": foi muitos outros sendo só ele. O compositor de "Sintonia" é, por exemplo, o mesmo de "Dê um rolê", uma de suas tantas parcerias com Galvão (letrista dos Novos Baianos), consagrada na voz de Gal Costa como um dos gestos mais marcantes do jeito de ser e de cantar da contracultura dos anos 1970: "eu não tenho nada, antes de você ser eu sou, eu sou, eu sou amor da cabeça aos pés". O mesmo que cantava no trio elétrico de Dodô e Osmar em Salvador, o mesmo que, quase como um Ary Barroso ou Assis Valente, gostava de esquentar os pandeiros do Brasil, descendo a ladeira.
Há menos de dois anos, Moraes Moreira esteve em Uberlândia, no projeto Música Importa, durante o aniversário da cidade. Sua partida nos deixa claro o tamanho do presente que recebemos. Já fui em um sem fim de shows na vida, mas poucas vezes me senti tão em êxtase como diante da mão direita de Moraes: nela estava o melhor do Brasil, o corpo todo da mistura de gente de remotos e avançados tempos e espaços. Diante dela, diante dele, resta a nossas mãos, saudar: aqui sempre esteve, aqui sempre estará.


O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

 
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