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14/04/2020 às 08h30min - Atualizada em 14/04/2020 às 08h30min

Visão noturna: só o amor pode matar o medo

ENZO BANZO

O meu amigo e parceiro paulistano Gustavo Galo publicou certa vez em seu perfil no Facebook que se o Caco Barcellos fosse mesmo um repórter sagaz, dedicaria um "Profissão Repórter" especial para investigar qual a água que se bebe em duas cidades brasileiras: Uberlândia e Bragança Paulista. A ideia era tentar entender como emergem tantos bons artistas dessas improváveis paragens. Da densa água de nosso ar seco não me canso de falar, e posso reforçar o convite ao nosso Caco. Mas hoje meu assunto é a água bragantina, da qual bebi altas doses anos atrás, quando passei uma temporada em São Paulo, morando com dois amigos compositores oriundos daquelas nascentes: Felipe Antunes e Tatá Aeroplano. Nas últimas semanas, os dois publicaram novos trabalhos dignos de brinde na caneca de água do Galo.

Em uma de minhas últimas idas à capital paulista, encontrei com os dois no estúdio. Lá estávamos para ouvir, no forno, o disco "Visão noturna", novo álbum do Felipe, em dupla com o artista angolano Nástio Mosquito. Depois dos abraços e brindes (bons tempos), o engenheiro de som Ota Carvalho acionou a nave sonora, que me conduziu a um voo inimaginável diante de uma paisagem inesperada: meio canto meio fala poética, meio batida eletrônica meio batuque de terreiro, o português daqui e o português de África. "Labirinto" era o nome da faixa (canção?), e nos sentíamos mesmo em um espaço-enigma: a conclusão se despediu. Diante da terra em transe, o cinéfilo Tatá, em êxtase, liricamente delirava, via no escuro, decretava: − Isso é Bacurau, Fê, isso é Bacurau! E eu enxergava, com ele, as imagens do sertão futurista do filme de Kleber Mendonça Filho como trilha visual perfeita para aquele acontecimento sonoro. Sexta passada, a visão foi finalmente revelada ao público, com o lançamento das três primeiras faixas do álbum, cujo enredo imagético é também sugerido no subtítulo: "Visão noturna - Ato I".

Naquele encontro no estúdio eu já sabia que Tatá também estava gravando disco, embora não tenhamos tocado no assunto. Isso porque Tatá sempre está gravando um disco novo: quando lança um trabalho, o seguinte já foi iniciado. Dessa vez, surgiu mais Aeroplano do que nunca, em "Ressurreições", um dos singles de seu próximo álbum, "Delírios líricos". Percebe-se que um artista alcançou a maturidade profunda da própria linguagem quando ele interpreta um outro artista, e aquilo soa completamente ele mesmo. Foi o que senti ouvindo a faixa, regravação de uma obra da antológica dupla atômica Jorge Mautner e Nelson Jacobina, que soa como se escrita por e para Tatá. Lançada assim, em época de Páscoa e quarentena, a canção, só pelo título "Ressurreições", já nos sugere uma série de reflexões. Quando a ouvimos, brota um grito que parece nosso, escondido, entalado: só o amor pode matar o medo. A frase diz muito, mas ler não é suficiente. O espírito lírico-delirante só se alcança ouvindo a gravação, cujo arranjo se vale de uma conquista do nosso rock dos anos 1980: a música acelerada e dançante repleta de lirismo, aquela que dá vontade de ouvir pulando de olho fechado numa sala escura, trombando vez ou outra nos outros que dividem o ambiente, uma implosão no corpo que explode em dança, descobrindo segredos guardados em sete mil quartos secretos.

De volta ao plano terreno, percebo que as águas bragantinas dos dois lançamentos, em correntes diversas, deságuam no mesmo rio: o universo do som convertido em sonho, do transe do ritual pop, da visão noturna que nos esclarece e ressuscita. Arte-luz na escuridão, só o amor pode matar o medo.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.


















 

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