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17/03/2020 às 08h45min - Atualizada em 17/03/2020 às 08h45min

O dia em que a Terra parou

ENZO BANZO

Corre pela rede virtual que o rockeiro baiano Raul Seixas haveria profetizado os temerosos dias que hoje correm, nos quais, enquanto voa o vírus, somos orientados e obrigados a nos recolher ao porto seguro dos nossos lares (para quem os tem). Tudo parado e suspenso, como canta a canção: "O empregado não saiu pro seu trabalho/ Pois sabia que o patrão também não tava lá/ Dona de casa não saiu pra comprar pão/ Pois sabia que o padeiro também não tava lá..."  Raul revela sua percepção da sociedade como rede, que ainda não era virtual, mas que já era interdependente: um para porque o outro parou; o outro parou porque outra coisa havia parado; tudo para, para a vida. Os aeroportos fechados, os jogos de futebol com arquibancadas desertas, os eventos cancelados, o vazio que se vê pelas telas da TV é mesmo cenário parecido com o da canção de Raul.

"O dia em que a Terra parou", faixa lançada por Seixas em 1977, parceria com o Cláudio Roberto, no disco homônimo que carrega a clássica "Maluco Beleza", aventava a possibilidade de uma sociedade paralisada no sonho de um maluco, e para isso inspirava-se no universo literário e cinematográfico da ficção científica. O título é emprestado de um filme norte-americano lançado em 1951 (The Day the Earth Stood Still, de Robert Wise) que, por sua vez, é baseado em um conto do gênero com o mesmo título, e que foi recriado para o cinema mais recentemente, em 2008.

De fato, assim como na canção raulseixista, a pandemia que nos assombra parece concretização real das tramas de ficção científica em que males além da imaginação assolam a humanidade. A profecia de Raul se realiza, entretanto, de modo inverso, quando chega aos últimos versos das estrofes que retratam seu mundo imóvel e recolhido: "E o doutor não saiu pra medicar/ Pois sabia que não tinha mais doença pra curar". A narrativa dos fatos reais de 2020, em sentido oposto, é aquela em que o temor se dá pela velocidade de propagação da doença, inversamente proporcional à capacidade da rede de saúde em receber os enfermos.

Isso nos faz lembrar de outros fatos atuais, que se parecem com filmes de ficção ou de terror. O presidente que desfere impropérios intolerantes em nome de Deus, venerado pela massa cega, também parece personagem bizarro dos filmes de vilões caricatos, heróis aos olhos de seus adoradores. O dado jocoso de o presidente afirmar, em um dia, que o coronavírus é mero sensacionalismo da imprensa (seu comentário é o mesmo para qualquer assunto), e, no outro, se ver ameaçado pelo vírus em sua própria sala presidencial, é como uma metonímia (aquela da parte pelo todo) que escancara o caráter insustentável do que diz e defende.

Na vida real, a desqualificação do Sistema Único de Saúde, pelos cortes no orçamento e pela ideologia do Estado mínimo, se vê desmontada pela necessidade de uma estrutura que dê conta da pandemia. Neste capítulo da nossa novela, a sociedade cobra e espera uma atuação consistente do governo, tanto para a Saúde quanto para a Economia, no temor de que a Terra-Brasil pare de girar, já que, se a roda para, poucos teriam capital de giro para sobreviver.  Diante da ameaça do corona, se os indivíduos devem lavar as mãos, a sociedade e o governo, não.

Em um romance de realismo fantástico (que tem lá seu parentesco com a ficção científica), o "Ensaio sobre a cegueira", de José Saramago, o mundo é devastado por um estranha doença contagiosa, que deixa todos cegos. Os personagens não têm nome, posto que a uniformidade da cegueira lhes tira a identidade. É assim que nos sentimos diante do vírus: apenas mais uma possível vítima, indefesa na Terra parada. Teremos trabalho, dinheiro, saúde, leito, vida? Que a lucidez nos ajude a combater essas cegueiras. Afinal, nesta estranha ficção do real, os personagens somos nós.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.


















 

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