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18/02/2020 às 11h06min - Atualizada em 18/02/2020 às 11h06min

O Rambo e a Chiquita

ENZO BANZO
“Não pulo carnaval, mas é no meio da festa que se manifesta uma das porções mais ricas do nosso cancioneiro. Não pulo carnaval, mas fico me divertindo ao observar esses recados subversivos fantasiados de tradição”
 
A última vez em que pulei carnaval com absoluta entrega e fé na festa foi na matinê do Ibiá Recreativo Clube, devia ter uns oito anos. Fui fantasiado de Rambo, o que era basicamente vestir uma calça verde e amarrar uma fita vermelha na cabeça. Gostei muito daquela vestimenta, que em parte era não vestir nada, sobretudo porque me impressionei com a faixa encharcada de suor depois da guerra da folia. Era muito bom poder ser o Rambo, pra mim que era mole e ruim de briga, além de brasileiro, criança e do interior. Talvez fosse isso o carnaval, ser Rambo por um dia.
 
Enquanto rodava, sambava e rambava no salão, lembro-me de construir as imagens de algumas das canções entre os sons dos tambores e metais: alguém tirando um coração de um jacaré, não sei se sabia o que era sogra; um ribeirão de onde vinha toda a água do mundo, alambique não sabia o que era; uma bandeira branca hasteada para uma trégua que não era bem a da guerra do Rambo. Não tinha ideia do que fosse pierrô ou colombina, mas compreendia que o primeiro tinha levado a pior na história, chorando que nem bebê querendo chupeta: um grande amor tem sempre um triste fim, mamãe eu quero mamar.
 
Não pulo mais carnaval por falha do meu temperamento roceiro. Mania de ser quieto- calado, ou de ficar conversando sentado na mesa do bar enquanto os outros sacodem o corpo. Preguiça macunaímica, tão identidade nacional quanto a nossa grande festa profana. Mas amo o carnaval, síntese do nosso país no cosmos do planeta. Já disse o poeta Oswald de Andrade, lá se vão quase cem anos: "O carnaval no Brasil é o acontecimento religioso da raça".
 
Na época deste dito de Oswald (década de 1920), sequer existiam as marchinhas que cantamos hoje. Este repertório passou a se consolidar na década de 1930, em compositores como Noel Rosa, Lamartine Babo e Braguinha. Para nós, parece que sempre existiram, como se fossem cantigas tradicionais de domínio público.
 
Não pulo carnaval, mas é no meio da festa que se manifesta uma das porções mais ricas do nosso cancioneiro. Por força do costume, o mais comum é nem repararmos no que dizem essas canções, recebendo-as de forma festiva e nostálgica, as sequências de sílabas tão decoradas e automatizadas que parecem não carregar mais sentido algum. Quieto no meu canto, vira e mexe surpreendo-me com o que diz uma marchinha que ouvi a vida toda, mas nunca parei pra reparar. 
 
Por exemplo: a "Chiquita Bacana", lá da Martinica, composição de Alberto Ribeiro e João de Barro, o Braguinha, a qual teve em Emilinha Borba sua grande intérprete. A composição celebra a moça de nome Chiquita e de alcunha bacana: "não usa vestido, não usa calção / inverno pra ela é pleno verão / existencialista, com toda razão / só faz o que manda o seu coração". A pequena Chica é retrato libertário de uma visão de longe das notícias que chegavam na década de 1940 da filosofia de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.  
 
Quando começa a tocar a marchinha da Chiquita, nunca sei se quem vem, se a mãe original, ou se a filha família demais. É que Caetano Veloso, amante das canções, do existencialismo e do comportamento libertário, criou na década de 1970 "A filha da Chiquita Bacana", uma marchinha que dá sequência à primeira, e que hoje em dia soa tão tradicional como a matriz: "na minha ilha, iêiêiê, que maravilha, iêiêiê, eu transo todas sem perder o tom". E o que rima com esse "tom", concluindo a estrofe, deixa o português do Brasil do carnaval para se internacionalizar no movimento feminista da época: "entrei pro Women's Liberation Front". Não pulo carnaval, mas fico me divertindo ao observar esses recados subversivos fantasiados de tradição.




*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.








 
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