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13/02/2020 às 08h30min - Atualizada em 13/02/2020 às 08h30min

Cacos de si

IVONE GOMES DE ASSIS

Lendo a obra “Entre cacos e pincéis” (2018), da poetisa goiana, residente em Uberlândia, Lucilaine de Fátima, à página 54, deparei-me com o poema “Justiça”, que diz: “Clamo pela justiça / Ao ver a situação / De guerra e fome pelo mundo // Me pergunto / Quem será punido / Por tanta barbárie // É inaceitável / Ver crianças morrendo / Sem razões plausíveis // A sensação é de impotência / Mediante a batalha / Que assistimos todos os dias // Vamos nos unir em comunhão / Ainda que sejamos / De crenças diversas // Levar ao mundo o nosso grito / De paz, suplicando / Que acabe de vez com tanta dor // Quisera abrir os olhos amanhã / E encontrar um novo mundo / Com mudanças profundas // Onde possamos acolher com amor / Todos os seres / Numa ação virtuosa / Multiplicando somente o bem”.

Ainda com o som daquele poema, peguei-me a pensar em uma matéria que assisti, nesta semana, em um jornal televisivo. Dois homens tentavam resgatar alguma coisa que pudesse ser útil, do que sobrou de suas casas, que foram levadas pelas chuvas. Um procurava uma roupa limpa, para ir ao trabalho. O outro, cheio de lixo e chorando, desabafou: “Até os animais vivem melhores do que nós”.

Como é possível uma penúria social dessas, em um país tão rico como o nosso? Por certo, não estou a pregar o assistencialismo emplacado nos “direitos” que tanto geram confusões e promovem frestas para a corrupção. Mesmo porque, quem quer ser igual? Todos buscam brilhar por seu próprio mérito. A expectativa é de que haja oportunidades iguais e não igualitarismo. Penso que o igualitarismo que se pinta na justiça social é um veio condutor para subjugar o homem, para enterrá-lo na servidão, de modo a atrofiar sua capacidade de batalhar por seus ideais. Se for em um sistema totalitário, impõe; se em um democrático, remete à zona de conforto. Ambos são horríveis e têm seu preço. Pois, quando se trata de igualitarismo, o preço é a “alma” do sujeito. Por exemplo, a intimidação moral, a barganha de favores, como votos, trapaças e outros.

Walter Benjamin (in: SAID, 2007, p. 69), escreveu: “Todo documento de civilização é também um documento de barbárie”. Bem sabemos que, em um processo social justo, todos podem ganhar, sem que alguém precise perder. Cada qual precisa saber seu objetivo e ter condições de lutar por ele. Quando há justiça, a igualdade no contexto social não se limita a direitos, mas, sim, amplia-se para as oportunidades, as quais promovem a liberdade de experimentação. E é no experimento que o sujeito encontra os seus sonhos e alcança os seus objetivos e determinações.

Contudo, quando se priva das oportunidades, quando se fecham as portas, não há possibilidade de escolha. Assim, o indivíduo é obrigado a tomar o caminho que lhe for determinado pelo destino. É um subterfúgio. Mas, nesta hora, o mundo também perde a chance de usufruir do conhecimento de muitos talentos, que são obrigados a abrir mão de suas possibilidades, para trancafiarem-se na linha de sobrevivência. O resultado é a penúria social, na qual milhões de pessoas são obrigadas a viver. Talentos não devem ser enterrados.

Uma civilização se constrói por meio da formação de sua cultura. Porém, uma civilização justa pauta sua cultura em conceitos que propiciam oportunidades, no contexto valor humano, amor e ações aliadas a esta linha de formação. Pode parecer utopia, mas prefiro chamar de humanismo.

A chuva é uma bênção que cai sobre a Terra, para fazer brotar o alimento. O problema não está nas chuvas, e sim, na barbárie social. A formação humana tem se ajustado em uma mediocridade tão absurda, que tudo se resume a decretar direitos, enquanto o ideal é gerar oportunidades.

A poetisa indaga: “Quem será punido, por tanta barbárie?”. Enquanto milhares de olhos insistem em si manter cegos, milhões de pessoas, em busca de recompor suas memórias, vão sendo inquiridas pela lâmina cortante das adagas sociais. Assim, seguem juntando os cacos de si.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.











 

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