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16/01/2020 às 09h26min - Atualizada em 16/01/2020 às 09h26min

Silêncio e medo

Ivone Assis
“A criança deve aprender sobre o valor e a privacidade de seu corpo. Quando ouvimos a criança, estamos construindo um cidadão. Os pais que oferecem tempo suficiente aos filhos, evitam que o filho busque atenção em pessoas e locais estranhos.”
 
Conhecimento é libertação. O silêncio não tem cor, nem idade, nem classe social... O silêncio não tem nacionalidade, nem estudos, nem títulos. O silêncio tem apenas significado. É preciso saber ler o silêncio de cada um, sobretudo das crianças, dos idosos, dos incapazes de se defender.

Nesta semana, em Porto Velho, o hospital infantil Cosme e Damião, por meio da Secretaria de Saúde (Sesau), informou que, em 2019, foi quase um cento de casos de abuso sexual, somente ali, naquela unidade, que também socorreu diversos outros abusos, de agressões a negligências, com graves traumas no psicológico dessas vítimas. O abuso sexual é um sério problema, que assola muitas vidas. E, por mais que seja necessário denunciar, discutir, trazer à tona casos como esses, a vítima se sente amordaçada pelo medo, optando pelo silêncio.

Diariamente, milhões de crianças são acometidas por esse tipo de crime. Abusos comuns entre 8 e 12 anos de idade, com meninas e meninos. É de dilacerar o coração, saber que a maior parte desses crimes são cometidos dentro de casa, por pessoas muito próximas da vítima, alguém da confiança dela, como amigo, tio, irmão, pai, padrasto, avô... “O percentual de vítimas meninos de violência sexual deve ser de 30%. Este é o número real, conforme publicado pela Análise Epidemiológica do Ministério da Saúde sobre os casos notificados de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, de 2011 a 2017”. (Gontijo, 2019, p. 79).

Outro dia, enquanto conversava sobre alguns assuntos de muita profundidade, com uma amiga, já da minha idade, ela foi arrancando de dentro de si os fantasmas que assombraram sua infância. Aquele que deveria ser o seu protetor, era seu algoz. Um dia, os abusos pararam, porque ela partiu, mas as repercussões psicológicas embarcaram em sua bagagem. Aquele silêncio que lhe era imposto pelas ameaças continuou a acompanhá-la. O medo foi alimentado e ficou robusto. Ninguém a viu. Ninguém a vê.
As palavras foram cortando a conversa. Feito navalha afiada, a memória ia rasgando o silêncio. “Eu era uma criança. Minha irmã também. Ele entrava no quarto e dizia que, se contássemos, ele mataria a mamãe...”.

Naquela hora, fui sentindo minha alma desfalecer. Como é possível alguém que existe para proteger ser capaz de violentar? Horas a fio, aquelas palavras foram sendo desfiadas, apinhadas de dor, de inépcia, de angústia... Como é possível um avô só implantar tristeza? Como pode um avô não deixar nenhuma lembrança que preste nas memórias das netas? Aquela conversa estava longe de acabar. Ainda viria um tresloucado tio também.

Qual criança merece passar por experiências não compartilháveis? Aqueles corpos pequenos sangravam a alma ingênua que neles habitavam. O simples cotidiano, daquela pacífica existência, ia destruindo a experiência de menina, de criança... daquela que sonhava crescer. Fiquei pensando nas palavras de Walter Benjamin (1933), “a gente voltava emudecida... não mais rica, porém mais pobre de experiências partilháveis...”.

Pedro Gontijo, autor de “Epidemia Secreta” (2019), aborda muito bem o abuso sexual infantil. Obra necessária nas escolas, nas reuniões e palestras do Serviço Social e da Psicologia, que pretendem assistir a criança. “Eu acredito que possa ser uma epidemia mais letal e espalhada do que os surtos históricos de Dengue ou Aids que presenciamos”. (Gontijo, 2019, p. 38).

A criança deve aprender sobre o valor e a privacidade de seu corpo. Quando ouvimos a criança, estamos construindo um cidadão. Os pais que oferecem tempo suficiente aos filhos, evitam que o filho busque atenção em pessoas e locais estranhos. Toda família tem a obrigação de estabelecer confiança e diálogo com a criança, também o Estado tem obrigação para com a sociedade, para que a criança seja criança, não importa qual seja a ameaça ou o ameaçador.

A boa literatura é uma excelente ferramenta de orientação aos pais e aos filhos. O mercado editorial chove livros assim. Conhecimento é libertação.




*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.












 
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