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26/11/2019 às 08h27min - Atualizada em 26/11/2019 às 08h27min

O voo de Pena Branca e Xavantinho

ENZO BANZO

Sempre que passa o Dia da Consciência Negra, como na semana passada, ao refletir sobre a força da cultura negra em Uberlândia, acabo por relembrar as figuras de Grande Otelo e de Pena Branca e Xavantinho, grandes expoentes da cultura negra de nossa cidade e região, quiçá os mais importantes nomes saídos de nossa terra para o Brasil e para o mundo. Dessa vez, me bateu uma saudade danada do Pena, a quem tive a honra de conhecer nos anos 2000, e de dividir o palco em apresentações do Grupo Emcantar, no qual eu era tocador de violão.
 
Imbuído por este sentimento, fui procurar vídeos da dupla na internet, e acabei chegando ao programa "Ensaio", da TV Cultura, gravado em 1991. Encontrei ali um relevante documento sobre a história de nossa cidade, com registro em um veículo de alcance nacional: Xavantinho conta que nasceu na zona rural, entre Martinésia e Cruzeiro dos Peixotos; Pena conta "causos" sobre a vida na roça, o trabalho, as festas, a folia de reis. É um jeito de ver nosso canto-sertão em realidade muito mais viva do que na tradicional história das oligarquias dominantes.
 
Tal narrativa não se limita ao que é contado, mas está, sobretudo, no jeito de falar e na forma musical. Ali está materializado o nosso Sertão da Farinha Podre, Brasil profundo como o da prosa de Guimarães Rosa, em estado bruto de poesia. Uma poesia que dispensa até o próprio texto, pois quem ouve Pena Branca e Xavantinho sabe que a virtude maior desta irmandade está no encontro único dos timbres de voz dos dois irmãos. Ouvi-los é estar diante do mistério humano: por que assim tanto nos tocam essas vozes? Não por acaso, o músico e estudioso José Miguel Wisnik evoca nossa dupla na conclusão de seu livro "O som e o sentido", que se propõe a contar "uma outra história das músicas": Pena Branca e Xavantinho cantando "Cio da Terra". Minas. O preto no preto. Iluminação.
 
Após a morte de Xavantinho, em 1999, Pena Branca esteve com frequência por aqui, apresentando-se ao lado do cantor e violeiro Tarcísio Manuvéi, codinome derivado do carinhoso tratamento a ele dado por Pena, e de vários músicos da cidade. Tivemos o privilégio de nos habituarmos aos seus shows. Naquela época, Pena Branca presenteou o Grupo Emcantar com a composição "Quatro Colinas", até então inédita, gravada no disco Mutirão (2003), em que tive a alegria de atuar como músico e um dos produtores musicais.
 
O ritmo da canção é inspirado nas folias de reis, e o refrão tem como tema o desejo de retorno às raízes: "oi saudade/ saudade de Minas Gerais/ faz tempo que eu vivo ausente/ eu quero é voltar pra trás". O "oi" que inicia o canto corresponde à nota mais aguda e duradoura de toda a melodia. Basta esse "oi" para pressentirmos toda nostalgia e amor do cantor caipira por suas origens. Já a expressão "voltar pra trás", uma volta no tempo e no espaço, é típica de nossa oralidade: somente um habitante de nosso mundo oral a usaria com tanta naturalidade. Reconhecemos bem a paisagem da primeira estrofe: "no cerrado tapete da terra/ dos cafés aos canaviais/ e o gado bafejando os campos/ pastando constante a ruminar".
 
Me pego ruminando: Pena Branca queria voltar, voltou, aqui esteve em seus últimos anos, sentindo muito a falta do irmão. Acredito que, para além da presença inegável de Pena Branca e Xavantinho em nossa gente, cultura e memória, é preciso que estejam presentes de forma mais concreta, materializados em nossa paisagem urbana, assim como Grande Otelo (que merece um teatro aberto). Torço para ver seus nomes nas principais avenidas, praças, centros culturais e sociais. No Rio, um dos aeroportos leva o nome de Tom Jobim. E se o nosso se chamasse Pena Branca e Xavantinho?

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.








 

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