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14/11/2019 às 08h26min - Atualizada em 14/11/2019 às 08h26min

Desvalias

IVONE GOMES DE ASSIS

Ao assistir a angústia de algumas mães que tiveram seus filhos surrupiados, sem deixar a menor pista de seus paradeiros, fiquei pensando não somente na dor e na tristeza dessas famílias, ou ainda no desconhecido assombro que abocanha a mente dessas crianças, onde quer que elas estejam, mas também no quanto a literatura chama a atenção para este fato e no quanto devemos ser vigilantes, nesta vida.

O escritor brasileiro, hoje, residente em Uberlândia, Antônio Bosco de Lima, em sua obra literária “Quatrocantos”, revela a agonia, o descobrimento do Eu e do Outro, a emoção, a realidade, o silêncio, o mercado de trabalho, o sofrimento, o amor, a memória, o vício, enfim, é uma obra que sacode o homem, levantando a poeira que há na sociedade, assombrando os ratos que se escondem por trás de risos e tapinhas nas costas, em uma perigosa rede de intrigas, alimentada por enganos e desenganos.

Dentre os muitos contos narrados na obra, destaco o “Messias Mackfields Jr.”. Nesse conto, a autor aborda o tráfico humano, a pobreza, o homem simplório e o homem astuto, na formação da cadeia de ambição e sobrevivência, em que, muitas vezes, a desumanidade vem em pele de lobo e a vítima é confundida como sendo o próprio lobo.

“Nasceu com uma carinha tão bonita, de quem iria salvar o mundo. Uma dessas carinhas que fazem bem a todos que a veem. Uns olhinhos promissores. Vivos. Nascido na Rua Santa Esperança, numa das favelas da periferia da cidade. Parido de uma mãe, sem pai nem parentesco. E para não ser ovelha-negra, também não havia país. Os vizinhos, que, segundo o padrão burguês, não eram tão belos, diziam: – Que criança tão linda, não merece morrer num lugar tão esquisito e esquecido como este. – Meu Deus, como ele é lindo! [...] A mãe, dentro de casa, fazia uma simpatia contra quebranto. Quem poderia ser o pai, tendo ele cabelos louros, cacheados e os olhos azuis! A mãe era morena. A própria mãe ficara a pensar. Quem poderia ser o pai? Para que ele crescesse com mais segurança, mais lindo e limpo, a mãe resolveu vendê-lo a um casal norte-americano, os Mackfields. A enfermeira da maternidade acertara tudo. Por uma pequena comissão. Os Mackfields acharam-o muito lindo, tão lindo... Além de preencher seus corações, resultaria em lucro, pois ele era – como traduziu o intérprete – salvador do mundo. Pagaram duzentos dólares. A notícia dos dólares espalhou-se e os vários pais de John Mackfields Jr. logo [...]”.

Mas o autor, entre a arte, o imaginário e a leitura de mundo, constrói uma narrativa que convida o leitor ao estado de alerta, porque os fios da vida são balançados com o vento, e há aqueles que ficam presos em obstáculos. Depois, perdem seu curso original, enveredando-se por saídas desconhecidas e estranhas: “John Mackfields Jr. se foi, cresceu forte e saudável na Avenue Five, rodeado de maçãs brasileiras, moças de belo porte. Nunca viu mulher com pote na cabeça, a não ser num quadro. Nunca se deparou com margaridas. Encarava a vida como observava as águas do Tejo, do Nilo, do Amazonas. [...] Foi ao Oriente visitar seus poços de petróleo. Comprou ouro e pedras preciosas brasileiras. No Brasil, abriu uma filial de Mackfields Joint Ventures Corportion [...]. Multiplicou o número de mutilados, de abortados, de loucos. Suas empresas cresciam. [...] Em sua bagagem, levou mais um messias [...]”.

O conto “Messias Mackfields Jr.” vai exibindo civilizações inteiras de silvas, modestos, pereiras... em que uns riem de suas sandices, outros choram por suas mazelas, neste mundo de “Meu Deus, que isso?!”.

O autor, com sua maturidade literária, por meio de sua arte, vai tecendo a expressão de umtempo, a ordem civilizatória de outro, e assim forma uma literatura que encurta o trajeto entre o real e o inimaginável nos quatro cantos básicos da vida: Saúde, Sociedade, Educação, Amor. Seus contos convidam-nos ao banquete da leitura. E, nesse espelho humano, estica um pano de fundo crítico, para uma sociedade disparatada e suas desvalias.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.







 

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