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08/11/2019 às 08h11min - Atualizada em 08/11/2019 às 08h11min

Edgar Allan Poe em cena – bricolagens contemporâneas (resenha de peça do Citu)

PAULINA MARIA CAON | PROFESSORA DE TEATRO DA UFU
Foto: Célio D'ávila

Nos dias 2 e 3 de novembro, estreou Edgar no Circuito Independente de Teatro de Uberlândia (CITU), do grupo Hex, que nasceu em 2017, composto por egressos do Curso de Teatro da UFU e atores em formação no mesmo curso. A atmosfera que se constrói desde o primeiro momento é sombria, a partir da penumbra, da composição de figuras humanas em crise, adoecidas, feridas, física, psíquica ou socialmente. Tais figuras desfilam diante de nós numa espécie de prólogo durante o qual o cenário é também construído diante dos olhos do público: um quadrado demarcado em fita crepe, dentro do qual outros dois quadrados se demarcam, criando uma pequena sobreposição ao centro – planta baixa de espaço, sobre a qual são postos poucos objetos ou mobiliários, que aos poucos vão revelando ambientes domésticos em transição ou suspensão temporal, ora sugerindo casas do séc. XIX, ora sugerindo apartamentos da atualidade. O mesmo ocorre com as questões humanas que se apresentam. As narrativas de diferentes contos de Edgar Allan Poe são sintetizadas em cenas que se sucedem e criam pequenas articulações entre si, trazendo à tona algumas das mazelas presentes na vida humana.

Roberto da Matta, em artigo da década de 60, compara Allan Poe a um antropólogo estruturalista, que busca compreender a existência humana a partir da redução de suas interações sociais a estruturas básicas. Assim, agindo como um bricouler (outra aproximação com a antropologia estrutural de Lévi-Strauss), Poe tomaria poucos elementos do real e proporia diferentes arranjos entre eles para construir totalidades com o que tem nas mãos, ressignificando esses elementos em relação às suas origens diversas. As cenas da peça parecem espelhar essa mesma operação criativa, pautando-se em poucos elementos de cenários, estruturas de iluminação e sonorização para discutir também essas estruturas básicas das relações humanas: as relações entre homem e mulher (dois casais presentes em duas cenas), entre classes sociais ou raças (uma patroa idosa branca e uma cuidadora negra), colocando em destaque as relações de poder e violência que emergem nesses contextos. 

Na encenação, assim como no artigo de Da Matta, a nota de abertura do conto O Gato Preto é citada: “No futuro, talvez, algum intelecto possa ser encontrado, que reduza meu fantasma a um lugar-comum; algum intelecto mais calmo, mais lógico e bem menos excitável que o meu e que perceberá nas circunstâncias que pormenorizo com terror, tão somente uma sucessão ordinária de causas e efeitos muitos naturais.”. Da Matta destaca a percepção aguda de Poe na análise de temas existenciais, por meio da imaginação e do elemento fantástico, aproximando-se dos mitos na estruturação dos seus contos. O grupo Hex, na tradicional conversa após a peça que ocorre aos sábados, fala da relevância dos escritos do autor por sua atualidade, ao debater temas que estão na ordem do dia em pleno 2019. Assim, mais de um século depois, nem Da Matta, nem os jovens do grupo Hex parecem ver nos cenários e enredos instaurados por Edgar Allan Poe apenas uma sucessão ordinária de causas e efeitos muito naturais. Ao contrário, seriam eles bons elementos para romper com o fluxo do tempo presente, deslocar o nosso lugar olhado das coisas, nos fazer pensar e agir em nosso tempo. 

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.








 

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