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24/10/2019 às 08h31min - Atualizada em 24/10/2019 às 08h31min

Que bicho é esse?

IVONE GOMES DE ASSIS

Que bicho é esse? Sabemos que o canto da araponga macho é sua ferramenta de conquista, porque as fêmeas irão escolher aquele que mais impressioná-la. O canto do acasalamento chega a ser ouvido a mais de 1 quilometro de distância, com isso, o bicho se expõe muito, pois, chega a atacar os ouvidos mais sensíveis, despertando a perseguição sobre si, enquanto a fêmea, em seu silêncio, vai vivendo no “come quieto”.

Mas, nesta semana, li em matéria de Evanildo da Silveira (BBC News Brasil) que os pesquisadores Mario Cohn-Haft (COBIO), Coleções Zoológicas (Inpa) e Jeff Podos (da Universidade de Massachusetts) constataram que a Araponga-da-Amazônia é o pássaro cujo canto é o mais “alto já registrado no mundo animal”, neste planeta de meu Deus, seu “canto pode atingir 125 decibéis (dB), um pouco menos que uma turbina de avião a jato, que chega a 140 dB”, achei um exagero, mas está lá, escrito.

O premiadíssimo poeta catarinense Solange Rech (1946—2008), escreveu “Arapongas” poema que compartilho aqui, pela profundidade de seus versos.

“No prédio, uma araponga bate ferro, / Reclama a liberdade que antes tinha, / Já que a tristeza dela é como a minha, / Adiro ao seu protesto e os olhos cerro. // Mas essa ave grosseira, se não erro, / Me tem por desafecto e me espezinha. / Perplexo, ouvi seu canto inda agorinha, / Canto estridente, parecia um berro. // ‘Não posso voar, sou presa a esta gaiola. / E tu? ... Algum tirano te controla?’ / ‘Meus grilhões (falei a ela) ninguém vê’ // A timpânica voz dessa araponga / Só faz-me censurar na noite longa: / ‘Que fizeste da vida? O quê? O quê?!’”

Bicho e homem se confundem, no vaivém de prisões e censuras. A araponga canta: Que bicho é esse? O homem tapa os ouvidos: Que bicho é esse? Enquanto vou absorvendo o poema de Rech, pensando na tristeza da araponga e também na dor do poeta, ponho-me a pensar, por horas a fio, no noticiário que acabei de ver, sobre um certo bairro da cidade, onde vários animais domésticos são mortos ou estropiados, não por acaso. O que mais me doeu foi ver um gatinho se arrastando, porque havia perdido os movimentos das patinhas traseiras. Como é possível que algo assim pareça natural a alguém? Não tenho animais de estimação, não aprovo prender animais em zoológico, não aprovo comercializar bichinhos, não aprovo gaiolas... mas isso é coisa minha, porque acredito que Deus nos fez livres e em diferentes espécies, para que, cada qual, viva em liberdade em seu clã. Porém, de repente, o humano inicia um novo processo no qual ele abandona as crianças, compra filhotes de animais de estimação, e quando estes envelhecem, dão-lhes o direito de escolha: eutanásia, abandono, mutilação, isso depende do comportamento cultural de cada “dono”. Mas que dono? Como podemos ser donos de outra vida, se não somos donos nem de nós mesmos?

Um bicho foi puxando o outro, até que cheguei à “A descoberta do mundo”, obra de Clarice, em que ele escreve: “Agora vou falar de umas verdades que me deixam espantada. É sobre bichos. Uma pessoa que conheço disse que o siri, quando se lhe pega por uma perna, esta se solta para que o corpo todo não fique aprisionado pela pessoa. E que, no lugar dessa perna caída, nasce outra. Outra pessoa que conheço estava hospedada numa casa e foi abrir a [...] geladeira para beber um pouco de água. E viu a coisa. A coisa era branca, muito branca. E, sem cabeça, arfava. Como um pulmão. Assim: para baixo, para cima, para baixo, para cima. A pessoa fechou depressa a geladeira. E ali perto ficou, de coração batendo. Depois veio a saber [...]. O dono da casa [...] pescara uma tartaruga. E lhe tirara o casco. E lhe cortara a cabeça. E pusera a coisa na geladeira para no dia seguinte cozinhá-la e comê-la. Mas enquanto não era cozida, ela, sem cabeça, nua, arfava. Como um fole. [...]”.

Espantados siris, tartarugas, gatos, arapongas... olham para o homem e perguntam: Que bicho é esse?

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.




 

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