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17/10/2019 às 08h30min - Atualizada em 17/10/2019 às 08h30min

A descoberta da fome

IVONE GOMES DE ASSIS

O que é a fome, afinal? É comum dizermos que o Brasil é o país da fartura, o que nos leva a crer em fome erradicada. Mas, como ignorar os 2,5%, que equivalem a 5,2 milhões de pessoas que passam fome no Brasil, anunciados pelo IPEA? Não posso fechar os olhos para o meu semelhante. Mas esse problema é antigo.

Na obra “A descoberta do mundo”, Clarice Lispector escreve: “1967. 19 de agosto. As crianças chatas. Não posso. Não posso pensar na cena que visualizei e que é real. O filho está de noite com dor de fome e diz para a mãe: estou com fome, mamãe. Ela responde com doçura: dorme. Ele diz: mas estou com fome. Ela insiste: durma. Ele diz: não posso, estou com fome. Ela repete exasperada: durma. Ele insiste. Ela grita com dor: durma, seu chato! Os dois ficam em silêncio no escuro, imóveis. Será que ele está dormindo? – pensa ela toda acordada. E ele está amedrontado demais para se queixar. Na noite negra os dois estão despertos. Até que, de dor e cansaço, ambos cochilam, no ninho da resignação. E eu não aguento a resignação. Ah, como devoro com fome e prazer a revolta”.

Sobre esta temática, aos 24/07/2019, em entrevista à Rádio Gaúcha, Valter Bianchini, da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), chama a atenção para o fato de que a situação da fome no Brasil volta a ser preocupante, pois milhões de brasileiros encontram-se “em casos de miséria extrema, subnutrição e fome”. Embora o País seja um celeiro de grãos e uma potência agropecuária, quase 3% da população é refém da seca, do desemprego, da má distribuição de renda... Programas como Bolsa Família, Fome Zero, Merenda Escolar... são louváveis, mas para alcançarmos o Fome Zero esperado para 2030, sem dúvida, faz-se necessário rever as políticas que envolvem o setor, e mais que isso, faz-se urgente a fiscalização, uma vez que falta consciência.

No site da Câmara dos Deputados deparei-me com “O curto caminho de volta ao Mapa da Fome” (25/04/2019). De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais (SIS/IBGE), “entre 2016 e 2017, a pobreza [...] passou de 25,7% para 26,5%. Já os [...] que vivem com menos de R$ 140 mensais [...], saltaram de 6,6%, em 2016, para 7,4%, em 2017” (FAO).

Mas já é 2019 e o Natal bate à porta: – Toc-toc! – Quem é? – A fome. As campanhas de arrecadação de alimentos são iniciadas.
Estamos na Era da Tecnologia e Ciência, portanto erradicar a fome e a miséria no país implica apenas eficácia nas políticas públicas, para tanto, mais que oferecer alimento, há que se priorizar qualidade da alimentação ofertada e também viabilizar caminhos para que a população abaixo da linha da pobreza encontre conhecimento e autoestima para serem competitivos no mercado. No Brasil, quase três milhões de cidadãos enfrentam a discriminação e a desigualdade, cujo limiar entre a vida e a morte, o pertencer e o não pertencer é a luta contra a fome. A classe de baixa renda carece deixar de figurar nos projetos para passar a figurar nas políticas.

Novamente, ilustro minha fala com Clarice Lispector: “29 de maio de 1971. Máquina escrevendo. Sinto que já cheguei quase à liberdade. A ponto de não precisar mais escrever. Se eu pudesse, deixava meu lugar nesta página em branco: cheio do maior silêncio. E cada um que olhasse o espaço em branco, o encheria com seus próprios desejos.  [...] o mistério? Acho que sim. Para me prender à matemática das coisas. No entanto, já estou de algum modo presa à terra: sou uma filha da natureza: quero pegar, sentir, tocar, ser. E tudo isso já faz parte de um todo, de um mistério. Sou uma só. Antes havia uma diferença entre escrever e eu (ou não havia? não sei). Agora mais não. Sou um ser. E deixo que você seja. Isso lhe assusta? Creio que sim. Mas vale a pena. Mesmo que doa. Dói só no começo”.

Entre dois tempos, enquanto a máquina de Clarice continua escrevendo, do lado de cá meu teclado continua digitando, sobre nossos pontos de vista: Quem comeu o grão que estava aqui? O que é a fome, afinal?

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.





 

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