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01/10/2019 às 08h14min - Atualizada em 01/10/2019 às 08h14min

A carniça nua de Danislau

ENZO BANZO

Eu tenho muito orgulho dos meus parceiros. O que os meus parceiros criam, parece que sou eu quem crio também, mesmo quando não estou, de fato, na parceria. Talvez seja difícil falar dos parceiros, porque parece que falamos de nós mesmos. O Danislau, por exemplo. Dividimos o palco, o papo, o pensamento, lá se vão mais de vinte anos. Quantas vezes me chamaram por aí de Danislau. Nem corrijo, acho graça. Assinamos o mesmo "Bernardes", sem parentesco do qual tenhamos notícia. Alegria na minha vida é receber qualquer esboço que me mande. Um de seus mais admiráveis trabalhos é o disco-performance “Carniça”. Recomendo uma busca nas plataformas digitais, digite "Danislau Carniça", veja você mesmo.

Em “Carniça”, Danislau está nu. Só a carne. Só a Carniça. Quando tira a roupa, algo se revela. Danislau se revela. Em Carniça. Por completo. É escritor, para o papel, para a voz, para os sons. É poeta, narrador, dramaturgo. É performer, cantor, personagem. Pastor, apresentador. Doído, engraçado. Faz vídeo, faz música. Tudo tem sua marca pessoal. E tudo tem a marca de todo o mundo que o cerca. Está tudo aí, a carniça de tudo.

Parece que foi o Tolstoi que disse aquilo de "fale de sua aldeia e estará falando do mundo". Pois é isso que faz o Danislau. Sua história tem como cenário o bairro Santa Mônica, em Uberlândia. Andar pelas ruas do Santa Mônica uns anos atrás passava inevitavelmente por encontrar com um sujeito chamado Malaquias. Malaquias da pedra e da pedra 90. Era nosso amigo, o Malaquias. Sempre se dava uma moeda pro Malaquias. Riso puro e banguela de agradecimento. O que foi do Malaquias? A história do Carniça é a história do Malaquias arquetípico. Todo mundo conhece um Malaquias, um Carniça. Ele está no meio de nós.

Em “Carniça”, Danislau conjuga a difícil equação de se abordar uma temática social. Sem cair no pieguismo, no didatismo, no “ensinamentismo”. Essa porcaria que está aí na nossa frente e para a qual, comumente, fechamos o olho, ou melhor, tampamos o nariz. A rasteira de Danislau é de forma e conteúdo, vai fundo. E, partindo do retrato social, chega na profundidade do humano. Por trás de Carniça está Luiz Henrique, está a criança, está a doce Doraluce.

A faixa (texto, cena, música?) “Doraluce”, aliás, é uma surpresa que faz chorar, delicadeza inesperada na vida de um crackeiro fedorento. Doraluce é a esperança da ternura. De qualquer maneira é doce. E mais doce ainda porque cantada em dueto comovente por Danislau e Serena Assumpção (que era uma entusiasta deste projeto). Doraluce é Serena, fé na força da beleza dessa vida dura.

O interessante de Danislau - e isso nasce com sua faceta de escritor - é seu poder de ser inventivo e comunicativo ao mesmo tempo. Danislau não fala de um outro mundo da cabeça do poeta. Fala desse mundo aí mesmo, que passa na rua, que passa na TV. Os ícones pop surgem com naturalidade: o carnê do telefone celular, as sacolas do Carrefour, o pastor pentecostal (que já virou personagem de massa), os Datenas da TV. E cada verso, direto, é uma construção consciente e impactante.

E o desfecho sem desfecho de “Carniça” é o nosso desfecho próprio. Porque nos descobrimos participantes desse show de horrores, como espectadores abobados. “Carniça” é a espetacularização da desgraça, tão cotidiana na vida e na tela. Danislau acertou no cerne, acertou na carne, revelou a carniça. Não adianta ir pra casa tomar banho.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

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