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27/09/2019 às 09h18min - Atualizada em 27/09/2019 às 09h18min

No país das maravilhas ou “como sobreviver à queda?”

JULIANA BOM - TEMPO | PROFESSORA DO CURSO DE DANÇA DA UFU

“A obra de Lewis Carroll tem tudo para agradar ao leitor atual: livros para crianças, palavras esplêndidas, insólitas, esotéricas; crivos, códigos e decodificações; desenhos e fotos; um conteúdo psicanalítico profundo, um formalismo lógico e linguístico exemplar. E para além do prazer atual algo de diferente, um jogo do sentido e do não-senso, um caos-cosmos”

Gilles Deleuze, “A lógica do sentido”.

Entro na sala do teatro e deparo-me com uma cena extremamente comum: quatro cadeiras de braço próprias à escrita, dois jovens com olhares parados e opacos, uniformes, mochilas - um contexto escolar. Ao pensar no texto que aguardava diante do título e da sinopse da peça “No país das maravilhas”, já construí toda uma relação possível entre a ordenação dos gestos, das posturas e dos pensamentos própria às atuais instituições de ensino e a necessidade de embarcar numa viagem para além dos muros da escola. Um além muro que pode acontecer na deambulação de um pensamento vagante quando os alunos estão “desatentos”. Mas desatentos a quê? Certamente ao conteúdo segmentado em matérias e temas dissociados de uma vida que se vive. E quando a atenção vaga, pra onde o pensamento vai?

Muito antes dos diagnósticos destinados às crianças por não se aquietarem com a coluna reta e com foco ao que se ensina, a peça adaptada textual, corporal e cenicamente por Call Oliver e os demais atores Raahbe Rocha, Carol Coltinho e Lucas Nasciutti, nos abre os apetites com humor e poesia, diante do insuportável de certo ensino que desconsidera as demandas dos infantes contemporâneos a esses tempos. Tempos de internet, imagens, virtualidades, anestesias, ausências. E onde foi parar a invenção?

“Fugir senão vão me moldar”. Um buraco em que se cai por certo tempo, um mergulho na linguagem, no inconsciente, no nonsense que pode nos interpelar sobre: qual o sentido da escola no atual contexto de desconexão entre os corpos, as vontades, as vidas? Quais seriam as reais urgências em tempos de transição onde o futuro puro não deixa claro os delineamentos do que se pode esperar? Ansiedade, angústia, insônia. Não, não se trata de ter garantias de algo que virá para compensar os anos de dedicação e disciplinarização escolar. Não ficaremos melhores por isso. A surpresa da adaptação proposta por Call Oliver é não nos aplacar com uma promessa moderna de certo futuro. Ordem e progresso já não fazem sentido. E é na esteira do não sentido, do que pode a ficção como tensão produtiva da realidade, que embarcamos e caímos juntos num buraco fundo e surpreendente.

A cenografia margeada pela iluminação cria, com o figurino e a sonoplastia, uma atmosfera variada com cores, personagens, florestas; flores que cantam, chá das 5, roubo de tortas, a rainha, o chapeleiro, o julgamento, o “cortem as cabeças!”

Um pote com certa substância é encontrado logo ao chegarem da queda. Uma poção. “E se for um veneno?” Ao ouvir essa pergunta, fica inevitável aos meus ouvidos escutar: seria algum tipo de medicalização da infância? “(...) vazio e solidão que nunca vão passar”. Ao tomarem-na num ímpeto de medo e excitação, eles diminuem e, depois, crescem. Quando digo “eles crescem”, quero dizer que se tornam maiores do que eram. E por isso também se tornam menores do que são agora. Não são maiores e menores ao mesmo tempo. Mas é ao mesmo tempo que se tornam maiores e menores. É ao mesmo tempo, no mesmo lance, que nos tornamos maiores do que éramos e que nos fazemos menores do que nos tornamos. Não se cresce sem se tornar menor ao mesmo tempo. Um paradoxo próprio da literatura de Lewis Carroll, a afirmação de dois sentidos antagônicos e concomitantes.

Não seria esse o desafio diante das nossas crianças. A escuta de uma ambivalência simultânea, paradoxal, (des)conectada e, à primeira vista, sem sentido? E como sobreviver à queda? Talvez, a questão mais urgente entre as realidades do contexto escolar e das desatenções de pensamentos deambulantes seja encontrar na criação, na ficção e na fantasia um tipo de saúde.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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