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27/08/2019 às 08h30min - Atualizada em 27/08/2019 às 08h30min

As vozes conviventes de Gal

ENZO BANZO

O Brasil é um país de mistura e diferença, e esta parecia ser a síntese almejada pelo movimento tropicalista quando de sua eclosão. Domingo no parque, guitarra e berimbau. A banda, Carmem Miranda, aquela canção do Roberto. Quando Caetano e Gil foram presos e exilados em 1969, estabeleceu-se uma lacuna: como aquele projeto ainda estaria no ar? A resposta estava em uma voz: "meu nome é Gal".
 
A trilogia "Gal Costa" (1968), "Gal" (1969) e "Legal" (1970) dá corpo, sequência e vitalidade ao plano tropicalista. Nela, o canto de Gal consegue reunir, por mais que isso pareça contrastante, João Gilberto e Janis Joplin, sendo Gal. Além dos compositores do movimento baiano (Caetano, Gil, Tom Zé), ali estão a alma brasileira de Jorge Ben e os então vistos como roqueiros alienados Roberto & Erasmo. Na voz de Gal, todas essas vozes projetam-se sem distinção de pureza e hierarquia, entre guitarras e orquestras, lado a lado com a comadre Sebastiana, rindo do namorinho de portão, requebrando com a filha de São Salvador, seja no português do sertão ou no inglês das canções e do cinema: baby, I love you.
 
O último disco de Gal Costa, "A pele do futuro" (2018), demonstra como a intérprete − que completa 74 anos em setembro, mês em que virá a Uberlândia − se mantém fiel ao projeto de reunir todas as vozes em sua voz única. Entre peças de artistas novos e consagrados, no álbum − que conta com direção artística de Marcus Preto e produção musical do ex-nação zumbi Pupillo −, figuram em sequência uma composição de Marília Mendonça (em parceria com Juliano Tchula, Junior Gomes e Vinicius Poeta), e outra de Adriana Calcanhotto. Mais do que colocar no mesmo campo duas mulheres compositoras de universos distintos, as faixas parecem funcionar como espelho invertido uma da outra.
 
"Cuidando de longe", com Marília, é faixa pra dançar, andamento acelerado, tom maior: um ambiente musical mais de curtição do que de sofrimento. Entretanto, trata-se de uma daquelas composições em que se canta um amor não correspondido. A pessoa que ama, ao invés de esmorecer-se em pranto derramado, prefere seguir "cuidando de longe", quieta no seu canto. E é essa postura que torna coerente a junção do insucesso amoroso com o clima celebrativo. Os cantos intercalados, no modo firme de Gal, no modo sincerão de Marília, materializam um estado de segurança quando deveria haver carência. Ao mesmo tempo, a sofrência está lá, sobretudo quando a melodia leva a voz a seus registros mais agudos.
 
Na sequência vem "Livre do amor", de Adriana, na qual o clima festivo dá lugar a uma sonoridade melancólica. A voz poética discorre sobre um estado de plenitude consequente do ato de se libertar do amor, "alforriada das canções melosas". Mas se o que se canta é a negação do "anseio de vão pertencimento", o modo de cantar expressa um sentido de incompletude, irradiado pela tonalidade menor em movimento de ascendência em descendência, em andamento desacelerado. Na letra, esse sentido de falta só se torna explícito no verso final: "livre do amor pra amar". A libertação é tão somente a condição para o início de um novo ciclo.
 
As duas faixas aparentemente opostas − seja pelas compositoras, pelo ambiente sonoro, pela forma e conteúdo das letras −, estruturam-se sobre uma mesma tensão entre letra e música: amar e não amar, eis a questão. As vozes díspares convertem-se, assim, em unidade.
 
Gal, Marília, Adriana. Mulheres, força, fragilidade. Diferenças, ajuntamentos. No mesmo ato, no mesmo palco, as muitas vozes, numa voz única: a do Brasil plural, que se respeita e se permite conviver.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

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