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20/08/2019 às 08h30min - Atualizada em 20/08/2019 às 08h30min

A máquina de lê lugares

NANDO LOPES

Planejo minhas as viagens até certo ponto. E em cada embarque, por mais monótono que o deslocamento possa parecer, tomo por empréstimo a interpretação pessoal das palavras escritas por Guimarães Rosa, em Grande Sertão: “o real não está na saída nem na chegada: ele dispõe para a gente é no meio da travessia”. Às vezes desvendamos o melhor de um lugar em uma conversa fiada com os moradores que ali vivem.
 
Foi assim que, com poucas bagagens, eu parti do centro histórico de Ouro Preto para conhecer o distrito de Nova Lima. Lembro que entrei no início da manhã em um ônibus urbano convencional para chegar até o destino. O veículo estava repleto de pessoas que trabalham na região, passageiros que já se conheciam e certamente notaram não terem visto meu rosto antes, incluindo uma moradora da região que pegou o ônibus no decorrer da estrada e se pôs ao meu lado com um cesto cheio de mantimentos. Pareciam pesadas suas bagagens e me pus em pé para ajudá-la a sentar. Depois de acomodados, comecei a revistar os registros das imagens feitas na minha máquina fotográfica, no dia anterior e as fotos na tela chamou a sua atenção. A passageira fitou uma imagem, perguntou quando eu tinha feito o retrato e comentou:

“Essa foto daí é a Igreja São Chico de Cima, fica lá no alto de Ouro Preto” disse, despertando meus olhos para sua explanação turística. "A igreja já é bem antiga e do alto você consegue ver toda cidade antiga. Como ela estava bonita ontem no fim da tarde, com o sol indo embora. A gente olha a igreja sempre, todo dia, mas não vê como ela é bonita", sorriu admirada. "É bom ter uma máquina de retrato que lê os lugares, ainda quero ter uma”, confidenciou.

Durante muitos anos eu me dediquei à fotografia, com leitura de livros sobre a área, participando de exposições fotográficas ou, ainda, como fotógrafo profissional. Neste tempo eu jamais ouvi um conceito tão simples e perspicaz sobre o ato de fotografar como as palavras ditas por aquela moradora de Nova Lima, naquela manhã. Vários teóricos conceituam a fotografia como sendo a "escrita da luz". Curioso que em frações pequenas do tempo um evento dissipa: o sol se põe, restando dele apenas um registro, que nada mais é do que a leitura que um fotógrafo fez de algo que ele viu e já se foi. Outros dias o sol há de se pôr, mas nunca um pôr do sol é igual ao outro. Do mesmo modo, os sorrisos nos retratos são singulares. Algumas emoções fotografadas nunca repetem. Resta apenas à imagem do instante, um registro nostálgico que guardamos do que desfez.

A fotografia nos permite enveredar em outras instâncias onde a efemeridade dos dias já não basta. Como bem assinalou Gérard Castello Lopes, a fotografia "é ao mesmo tempo um registo da realidade e um autorretrato, porque só o fotógrafo vê aquilo daquela maneira”. Percebo que aquele que se dispõe a fotografar lê o mundo a sua volta e guarda o registro de instantes memoráveis, como quem assinala uma citação em um livro de cabeceira e guarda a leitura das palavras que tomou os seus pensamentos.

A inusitada passageira, que embarcou durante a viagem, desceu do ônibus que estávamos antes do desembarque em Nova Lima. Despediu-se de mim com um aceno no portão de uma casa situada à beira da estrada, enquanto eu segui no ônibus até o meu destino final. No resto daquela viagem fiquei a pensar que a minha "máquina de ler lugares", recém-batizada, talvez fosse meu diário de bordo particular. Nela eu coleciono os registros de lugares que, flagrados por minhas retinas curiosas, tornou-se parte do mundo que eu pude conhecer e dispus a guardar boas recordações. Ainda hoje folheio álbuns de retratos como quem lê um livro de memórias. Por detrás de cada imagem reside um pouco da poesia que eu pude viver.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

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