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02/07/2019 às 09h00min - Atualizada em 02/07/2019 às 09h00min

Em Araxá, Alice ali, outro lugar

ENZO BANZO

Araxá é logo ali. Saída para Belo Horizonte, passa Nova Ponte, Nova Serrana, Pedrinópolis, Perdizes, desce a serra, e o planalto vasto daqui dá lugar ao mar de morro de lá. Baixa a temperatura, menor a secura do ar. Nasci na continuação da estrada, no Ibiá, como gostamos de falar. Araxá era nossa cidade grande, a sala chique da nossa roça. Quantas vezes lá cheguei, passeio de família, excursão de escola, ir ao médico ou comprar artefato de que nosso comércio não dispunha. Feito o que fosse na cidade, era obrigatória, depois, a visita ao Barreiro. Ficava logo ali, mas parecia o portal de um outro mundo, em que até a água era outra e melhor. No glamour imponente da arquitetura externa, no interior das vastas salas do Grande Hotel, entre a beleza dos móveis e a sedução relaxante dos banhos, a vida parecia vibrar em outra dimensão.
 
Vibrar a vida em outra dimensão é qualidade que se pode atribuir, de forma análoga, à arte e à literatura. Dada esta convergência, nada mais apropriado que a escolha do Barreiro para sediar um festival literário. E no frio do último junho, aconteceu mais uma edição da FliAraxá, evento internacional que já virou tradição, e que mobiliza um grande público dividido entre a festiva área externa − com música, shows e comidas temperadas pelo ar e pela paisagem − e as mesas de debates e livrarias em salões e teatros do Grande Hotel. Uma cena que vi de longe resume para mim o impacto da Fli: aparentemente sem se notarem, cruzam-se em uma grande sala o romancista português Valter Hugo Mãe e a poeta brasileira Alice Ruiz. Tudo é silêncio no tráfego deste pequeno momento em que se encontram as palavras de muito da melhor prosa e da melhor poesia de nossa língua no tempo de agora. Era logo ali. Era outro lugar.
 
E diante da poeta Alice (sim, poeta, pois para ela os homens que virem "poetos") experimentei os momentos mais sublimes daquele espaço outro. Lembro-me da primeira vez em que li o nome desta autora, no encarte de um disco de Itamar Assumpção. Era a letrista de "Milágrimas", cujo refrão − "a cada mil lágrimas sai um milagre" − foi recentemente lembrado por Luiz Tatit em uma entrevista, quando perguntado: "qual o melhor verso da canção brasileira?" Desde lá, qualquer escrito dela me interessa. Ali, em um festival literário, o que eu esperava de Alice era testemunhar o instigante passeio de sua inteligência, o que se confirmou na clareza de sua fala crítica, atenta ao que converge e ao que diverge em campos como o da estética e o da política.
 
Mas os tais momentos sublimes não costumam emergir destes fundamentais debates reflexivos, e sim da experiência concreta com a expressão artística. E foi o que aconteceu quando Alice passou a dizer seus poemas. E um poema falado não é um poema escrito, não é uma letra cantada. É outra coisa, outro lugar. E isso ficou claro quando Alice disse "Socorro", um de seus textos mais conhecidos que, musicado por Arnaldo Antunes, fez sucesso nas vozes de Cássia Eller, do próprio Arnaldo e de outros intérpretes.
 
A experiência com o mesmo texto poético falado por sua autora foi totalmente diversa e surpreendente, ainda que a maioria do público conhecesse a canção. Alice, para dizer o poema, muda a postura do corpo: a coluna ereta, o controle absoluto da emissão, a divisão precisa dos versos, a beleza de seu timbre natural, aveludado, nem grave nem agudo, nem tímido nem exagerado, no ponto exato, como se tudo se desse ali e agora. E nós, na plateia, sentimos tudo, menos nada, olhos marejados era o que mais se via. A figura de Alice Ruiz, marcada pelo esplendor de seus longos cabelos brancos, quebrava qualquer distinção que pudesse existir entre corpo e palavra, levando a vibrar a vida naquela outra dimensão à qual nos leva a arte. Era Alice ali, lá em Araxá, sendo outro lugar.


*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

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