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30/05/2019 às 08h00min - Atualizada em 30/05/2019 às 08h00min

Fendas históricas

IVONE GOMES DE ASSIS
Nesta semana foi a vez de minha atenção cair sobre a obra de Mary Karr, escritora nascida no Texas, e autora do comentadíssimo “The Liars' Club” (O clube dos mentirosos), publicado em 1995, cuja escrita se forma de suas memórias, sobretudo sua complicada infância.

Por último, Karr publicou “Lit: a memoir”, em que ela narra sobre seu período negro e sua salvação. Agora, esta obra memorialística de Mary Karr conquista o cenário espanhol, apresentando as fissuras de sua vida, entre vícios, estupros, desajustes, mas, por fim, superação. A autora descreve sobre sua difícil convivência familiar, e sobre a violência sofrida por meio de dois estupros. Atribui o primeiro a um vizinho e o segundo, ao marido.

A romancista e poeta, Karr é, também, professora universitária em Nova York, há 30 anos, e procura viver sem medo de fantasmas do passado, embora tenha arrancado as páginas sobre o estupro ao passar o livro para o seu filho ler. A autora credita sua superação à fé, em especial, no ser humano. E entre um questionamento e outro, Mary Karr vai encontrando suas próprias respostas. Ela sofreu, lutou e venceu.

No prólogo de seu livro, Karr escreve: “Pouco antes de minha mãe morrer, o cara que estava reformando a cozinha puxou um azulejo da parede com um buraco muito suspeito. Ele sentou-se de joelhos e ergueu o ladrilho para que o sol filtrado pelas cortinas amarelas e envelhecidas parecessem perfurar o buraco como um laser. / Ele piscou para Lecia e eu e, então, virou para a minha mãe de cabelos grisalhos, concentrando-se em seu volume de Marco Aurelio e uma tigela de pimenta picante. / – Sra. Karr, isso parece um buraco de bala! / Lecia, que não deixava passar uma, interveio: / – Isso não foi quando você atirou no papai? / E mamãe estreitou os olhos, abaixou os óculos um pouco pelo nariz patrício e disse com indiferença: / Não, foi quando [...]. Sirva essa anedota para explicar por que decidi escrever ‘The Liars’ Club’ como um livro de memórias e não como um romance: quando o destino coloca você em uma bandeja de tais personagens, por que inventar alguma coisa? Também ilustra, até certo ponto, a estranha veia de minha mãe e até que ponto – ela deixou a bebida muito antes de morrer - ela assumiu [...] seu passado com pouca hesitação [...]”.

É nessa tentativa de humor negro que Mary Karr abre sua obra. Em sua escrita autobiográfica, ela vai desfiando palavras que denunciem sua dor, ao mesmo tempo em que cativa o leitor como se este fosse um amigo com o qual a personagem vai compartilhando vivências, por meio de um desabafo ao mundo desconhecido. Pois, escrevendo, a palavra se encarregará de levar a história para espaços longínquos, jamais imaginados pelo escritor, e, alcançando os olhos do leitor, terá ali um amigo, mas alcançando os olhos do crítico, poderá ter um defensor ou um acusador, não se sabe.

De todo modo, a história publicada, “amada ou odiada”, cruzará grandes espaços de tempo, espalhando-se com o vento, sendo plantada nas mentes leitoras e, geralmente, brotando em discussões literárias. Creio que foi nesta convicção de medo de naufrágio e esperança de porto seguro que Mary Karr optou por contar sua história em seus livros. E deu certo, porque sua narrativa aportou no gosto do leitor.

Como escreveu Carlos Drummond de Andrade, em “O avesso das coisas”: “O arquivo supre a falta de memória, lembrando o que desejávamos esquecer”. Apesar de que, “A arte vivifica a humanidade e aniquila o artista. A obra de arte é o resultado feliz de uma angústia contínua” (DRUMMOND, 1990, p. 13-14). Assim, o artista da palavra segue por entre suas fendas históricas.
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