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12/03/2019 às 10h26min - Atualizada em 12/03/2019 às 10h26min

Fevereiros das águas de março da Mangueira

ENZO BANZO
Mês passado eu roletava por São Paulo, fui parar no cinema para ver “Fevereiros” (Marcio Debellian, 2019) sem ter até então muita notícia sobre o filme. Um documentário sobre Maria Bethânia, era essa a rasa informação que aguçara minha curiosidade. O bom de não assistir o trailer ou ler a sinopse é a potência da surpresa, assim gosto de fazer, e foi assim que descobri que Bethânia era o centro de uma obra de muito maior abrangência: ali estavam Bahia, Rio e Brasil em um mesmo ritual popular, na eterna busca pelo mistério da vida, enredos sagrados e profanos de religiosidade sincrética em pleno desfile de escola de samba.
 
“Fevereiros” trata da fé da filha de dona Canô, enquanto se prepara, em Santo Amaro, para a festa de Iemanjá e de Nossa Senhora da Purificação, e enquanto se projeta no Rio o desfile da Estação Primeira de Mangueira, que naquele ano de 2016 se sagraria vencedora celebrando a trajetória, o canto e a crença de Maria Bethânia. “Fevereiros” nos mostra como a cantora nunca passou um 2 de fevereiro longe de sua terra, onde participa, em tradição familiar, de todos os preparativos e rituais para a procissão que toma conta de sua cidade: "trabalhei o ano inteiro, trabalhei o ano inteiro na estiva de São Paulo, só para passar fevereiro em Santo Amaro". “Fevereiros” se passa no mês em que geralmente acontece o carnaval, e nos pegamos a notar mais semelhanças do que diferenças entre uma procissão para Nossa Senhora e uma escola de samba na avenida.
 
É esse um filme de entidades, sejam elas as imagens dos santos católicos, as incorporações nos terreiros de candomblé, a profunda sabedoria das Velloso e do Veloso (o irmão Caetano tem sobrenome com grafia diferente por um erro de registro), os totens de alegoria do desfile de carnaval, a sensualidade do corpo em rebolado, a força simbólica da estação fundada por Cartola. É a mesma Bethânia que carrega a imagem da santa sobre as costas na procissão e desfila no alto do carro alegórico como grande homenageada. Sagrado e profano, céu e terra, coisa só. "O carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça", já dizia Oswald de Andrade.
 
Passa fevereiro e chega março com suas águas. Narrativas em transformação, agora já não há como interpretar “Fevereiros” sem ligá-lo ao recente desfile da Estação Primeira, novamente campeã. Assim como foi impossível, sob o impacto de “Fevereiros”, não assistir a este março de chuvas em blocos como sucessão e desenvolvimento de "A menina dos olhos de Oyá". Bethânias, Marias, Mahins, Marielles, malês, num mesmo ritual. Revisão da história, aceitação da fé, renovação da festa, assunção das feridas.
 
Em "História pra ninar gente grande", a sensível competência da Estação Primeira se revela no cruzamento sem perdas entre o discurso político, a pesquisa histórica e a construção estética. Um dos diferenciais deste conjunto é a originalidade contundente e cativante de seu fio condutor: o samba-enredo. Este estilo costuma se apresentar em fórmulas bem definidas, sendo normalmente esquecido quando acaba carnaval. Não parece ser o caso do novo samba da Mangueira, que talvez ainda soe na voz de algum intérprete para além da avenida.
 
A voz que canta conversa com o país personificado, em citação à Aquarela do Brasil, de Ary Barroso: "Brasil..." Mas o clássico samba-exaltação festeja a virtude do samba e do povo numa idealização na qual não parece haver problemas na vida brasileira. Já no samba-enredo da Mangueira, há uma espécie de celebração invertida, na qual se glorifica o Brasil lhe apresentando a face oculta, oposta à da história oficial: "o avesso do mesmo lugar". A relação de texto e melodia constrói um sentido emotivo de aproximação entre o canto e seu interlocutor, o Brasil personagem, estendido ao brasileiro, a gente mesmo que está escutando e sambando. Expressões como "meu nego" e "meu dengo", em escala ascendente, aproximam o país personificado da voz que canta, saída da "poeira dos porões". Na sucessão de versos e imagens, esta voz acaba por revelar-se como espelho, convertendo quem fala e quem ouve no mesmo personagem coletivo: "mulheres, tamoios, mulatos", "índios, negros e pobres". Com luvas de pelica e sambando de salto, a Estação Primeira de Mangueira responde às mais cruéis violências da história passada e presente, e mostra ao Brasil o que ele é.
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