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28/02/2019 às 08h22min - Atualizada em 28/02/2019 às 08h22min

Abuso de poder

IVONE GOMES DE ASSIS
Sociedade contemporânea. Diariamente, ouvimos falar em direitos e cidadania. Sabemos que cidadania está atrelada aos valores que intentam propiciar o bem maior à comunidade. Mas, é comum haver discórdias entre o coletivo e o individual, cabendo ao Estado impor um ponto de equilíbrio entre as partes, a fim de que se chegue a um consenso. Pois, a diversidade faz parte do ser. O disparate é quando o homem adere a uma liberdade descomedida. Quando isso ocorre, o resultado tende a levar a incalculáveis infortúnios.

No entanto, a democracia proclama que todos os homens (e mulheres) nasceram iguais, portanto têm direitos iguais perante a lei. Mas, na prática, muitas vezes a realidade é outra, sobretudo na Era da Barbárie social e contemporânea, em que o diálogo no lar foi substituído pelo bate-papo na rede social; em que cobrar direitos é ofensa grave.

Recordemos o caso do “seu” Crispim Terral, ocorrido no dia 19/02/2019. Ele, um comerciante da raça preta, 34 anos, morador de uma cidade da Bahia, que, ao procurar sua agência bancária, pela 8.ª vez, para solucionar um débito indevido em sua conta, foi agredido e furtado de seus direitos de cidadão livre. O gerente, fazendo uso de “sua autoridade”, ordenou que se algemassem o cliente, dizendo “Não faço acordo com esse tipo de gente”. E, na onda dos colarinhos, o policial deu uma gravata naquele pai, cuja filha de 15 anos o acompanhava. A menina se desesperou. A vítima do débito indevido se tornou mais vítima ainda. Como o próprio Crispim descreve em sua rede social: "Momento terrível e absurdo. Em pleno século XXI, fui tratado de forma ríspida e claramente fui vítima de preconceito racial".

Diante tanta barbárie, é como se “O Navio Negreiro”, de Castro Alves, aportasse ali, em pleno vapor: “Existe um povo que a bandeira empresta / P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... / E deixa-a transformar-se nessa festa / Em manto impuro de bacante fria!... / Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta, / Que impudente na gávea tripudia? / Silêncio. Musa... chora, e chora tanto / Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...”

O poeta busca apurar a quem pertence a bandeira hasteada naquele navio impune, cuja barbaridade não se cessa.

“Auriverde pendão de minha terra, / Que a brisa do Brasil beija e balança, / Estandarte que a luz do sol encerra / E as promessas divinas da esperança... / Tu que, da liberdade após a guerra, / Foste hasteado dos heróis na lança / Antes te houvessem roto na batalha, / Que servires a um povo de mortalha!...”.

Ao constatar que a bandeira hasteada é a de seu país, o poeta indigna-se, em pranto e desapontamento. Ele se aflige em ver que sua terra de canto e poesia se transformara em um fosso para promover o sofrimento. O poeta destaca as qualidades brasileiras, ressalta a luta pela liberdade e a esperança que habita a nação, sentimentos que lhe provocavam tanto orgulho, e que, em seu lugar, vão ficando somente a mácula do tráfico de escravos.

Neste episódio de Crispim, a flâmula do banco que até ali servia-lhe de inspiração, orgulho e confiança, caiu por terra, arrastou-se pelo convés da memória. Não queria acreditar. E todo o sentimento de desengano e engano entre sua agência e ele, perdeu a magia poética. A confiabilidade foi quebrada. E a poética do bom senso cedeu espaço à tortura psicológica de Crispim. A autoridade, a cidadania, os direitos humanos, a fidúcia, ... tudo foi colocado em jogo.

Se para Castro Alves, a poesia e a infinitude do céu e mar foram colocadas em xeque, impactadas pela barbárie nos porões do navio negreiro. Naquela agência baiana, também a “poesia” e a expectativa de bom atendimento e competência foram colocadas em risco, ante a nebulosa ação da gerência para com o cliente. Um mal-estar se estabeleceu ali, abalando as estruturas.

Tal qual o poeta Castro Alves clamou a Deus, a respeito daquele barbarismo, também pedimos uma intervenção divina no tráfico de influência que consome a sociedade contemporânea.
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