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05/02/2019 às 08h30min - Atualizada em 05/02/2019 às 08h30min

Matriarcado da Pindorama Folhuda

ENZO BANZO
Coisa que me alegra é quando sai um disco que estava esperando pra ouvir. Aquele ritual, bota o fone de ouvido, caminhada, pôr do sol, o som é a trilha da vida, a vida é o cenário da música. "Sente-se diante da vitrola e esqueça-se das vicissitudes da vida", canta uma das faixas do tal disco que eu aguardava e agora está no ar. Os versos são de Oswald de Andrade, a música é de Juliana Perdigão, “Folhuda” é o nome do disco. Se ao invés da vitrola temos o play do Spotify, trata-se de mera evolução da manivela para o digital. O gesto é o mesmo, e esquecendo as tais vicissitudes talvez entendamos melhor a própria vida.
 
A alegria é a prova dos nove, e lá se vão 90 anos da publicação do "Manifesto Antropófago", texto desse nosso mais rebelde modernista, que às vezes parece ter sido escrito na semana passada. Só a antropofagia nos une, e mais ainda nestes tempos em que os tabus andam por aí aprontando rebus. O papo não era assim tão diferente há quase um século, época em que Oswald de Andrade se voltava contra o patriarcado das instituições doutoras e opressoras, na vida e na poesia. A transformação do tabu em totem, a deglutição antropofágica recriadora, todo o movimento libertador conduzido por Oswald levava a uma nova (des)organização social: o “Matriarcado de Pindorama”. “Folhuda” é vida e trilha desta contraordem.
 
No disco, Juliana Perdigão costura poemas que musicou, formando uma linha não linear de poetas de diferentes tempos e lugares, condensados em sua voz. A linha se enovela a partir de duas pontas que se unem: num extremo está Oswald de Andrade, cânone da nossa vanguarda; no outro, a contemporânea companheira de Juliana, Angélica Freitas (que inclusive deu o ar da graça vestida de vermelho na última prova do Enem, ai meu tabu!). Entre um e outra, junto a uma leva diversa de escritores e às bases musicais inventivas da banda Os Kurva, ganha som e vida o “Matriarcado da Pindorama Folhuda”.
 
Logo na abertura, em composição sobre texto de Angélica, apresenta-se a figura da mulher pré-histórica que será domesticada pela sociedade patriarcal: "há milhões, milhões de anos / pôs-se sobre duas patas / ela era brava e suja / brava e suja / e ladrava". É uma espécie de introdução cantada para a entrada do som pop e quebrado que sustenta o refrão, ícone irônico da idealização social da fêmea domada: "uma mulher boa / é uma mulher limpa / e se ela é uma mulher limpa / ela é uma mulher boa". A composição revela uma inteligência astuta travestida em debilidade diante de débeis convenções: a mulher boa deve ser limpa, a mulher deve ser limpa para ser boa. A ironia do texto é potencializada pelo canto solto de Juliana, pelo coro ritualístico de vozes femininas, pela base musical torta, pela instabilidade sonora que estremece os padrões do correto.
 
Na ponta oswaldeana, desponta a faixa “Anhangabaú”, da qual a autora pinçou o nome do disco: "Sentados num banco da América folhuda / O cowboy e a menina / Mas um sujeito de meias brancas / Passa depressa / No Viaduto de ferro / Anhangabaú". Uma palavra soa diferente quando é título de um disco, e é interessante a chuva de significações que sugere. Folhuda é a América das florestas, a Pindorama do Matriarcado. Folhuda é Juliana Perdigão tomando para si as folhas da América e dos livros de poesia. Mas uma mulher folhuda não é uma mulher limpa, não é uma mulher boa. Uma mulher folhuda canta rock e grita no refrão, e chegamos a imaginá-la em dança caótica em meio ao solo de teclados atonais. Uma mulher folhuda não serve ao sujeito de meias brancas que passa depressa no viaduto de ferro. Anhangabaú é nome indígena da cidade caótica, gritado no primitivismo do rock. Brava e suja.
 
No recheio, entre as folhas, estão os cantos das diferentes vozes que compõem a folhagem: caminho de retorno e avanço que se alterna da calma à pressa, entre lírico, sagaz e agressivo. Mulher que esbraveja e acalanta. Música de precisão e de surpresa. “Folhuda” é devolução antropofágica de quem comeu de tudo e fez daquilo a própria língua, a própria pele, a própria folha. Só me interessa o que não é meu, lei do antropófago. E, é sempre bom lembrar, quando uma poesia se torna canção ela está, na verdade, voltando a ser música, estado primeiro da linguagem poética. Primitiva e avançada, no Matriarcado da Pindorama Folhuda.
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