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31/01/2019 às 08h38min - Atualizada em 31/01/2019 às 08h38min

A palavra

IVONE GOMES DE ASSIS
O medo, muitas vezes, faz com que se atribua o sucesso ou o fracasso da raça humana ao uso, ou não uso, das armas de fogo, porém, se pensarmos com o pensamento livre das ideias prévias, entenderemos que a violência está na mente humana, portanto o maior poder de agressão está no corpo humano. Sem qualquer “acessório” (armas brancas, armas de fogo, tecidos, madeiras, ferramentas, venenos...), o indivíduo violento vive armado em pensamento, o que o leva a arquitetar e a cometer assassinatos, agressões, violações, crimes bárbaros... é a sua mente doentia. Porém, mais que qualquer objeto desses citados, temos ainda uma arma mais poderosa que todas: a palavra.

É com o poder a ela conferido, que a palavra edifica ou destrói. Com a palavra, Deus criou o mundo... a luz... “Haja luz”. Com a palavra, homens governam ou desgovernam o mundo. Com a palavra, clama-se por socorro. Chora. Sorri. Pede clemência. Julga. Condena. Absolve. Enfim, a palavra é o princípio de todas as decisões.

Foi fazendo uso do poderio concedido à palavra, bem como utilizando o lado violento de si, que pessoas emitiram laudos falsos, certificando a represa do Córrego do Feijão para uso sem riscos. No entanto, a palavra trincou, e a barragem se rompeu e engoliu os gritos das vítimas que não tiveram tempo de fazer uso de sua própria voz. Brumadinho foi violentado.

O escritor Olavo de Carvalho escreve: “Boa parte da ‘ciência social’ de hoje não é senão o recorte das individualidades segundo a medida da mediocridade-padrão”. (2013, p. 104) E complementa: “O homem medíocre não acredita no que vê, mas no que aprende a dizer”. (2013, p. 208).

Eu queria dizer que sou indiferente a isso, que sou inocente. Mas não é possível, porque, quando eu me calo diante da ignorância, da anormalidade, do absurdo, também assumo parte da culpa, porque a palavra foi engolida, escarrada, cuspida. Ocultar-se é aceitar a mediocridade como sintomas de habitual. E o que mais fazemos, em meio ao corre, é nos calar diante de situações dificultosas, esperando que o tornado passe.

Como muito bem escreveu Ferreira Gullar, em “Traduzir-se” (1980), “Uma parte de mim é todo mundo; outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão; outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim pesa, pondera; outra parte delira. Uma parte de mim almoça e janta; outra parte se espanta. Uma parte de mim é permanente; outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem; outra parte, linguagem. Traduzir uma parte na outra parte — que é uma questão de vida ou morte — será arte?”.

Sem palavras ante tal vertigem, ainda escoro-me em Gullar, que diz “Fica o não dito por dito”: “o poema, antes de escrito, não é em mim mais que um aflito silêncio, ante a página em branco, ou melhor, um rumor branco ou um grito que estanco, já que o poeta que grita erra [...], o poema antes de escrito, antes de ser, é a possibilidade do que não foi dito, do que está por dizer e que, por não ter sido dito, não tem ser, não é, senão, possibilidade de dizer. Mas dizer o quê?”
Não há o que se dizer ante tal violência. Como anunciou o poeta português Albano Martins, “Nenhum ramo é seguro. Frágeis são as palavras”. Ora, em um campo de batalha, com uma granada já puxada o pino, basta a fragilidade da palavra para que histórias inteiras sejam dizimadas. A consciência é a bússola que norteia, enquanto a palavra é a lâmina cortante, que serve para aparar qualquer coisa que se coloque à sua frente. Se o resultado será de contenção ou dilaceramento, isso vai depender da bússola.

O crime ocorrido em Brumadinho abriu fissuras permanentes na história. Matou-se pessoas, peixes, plantas, rios, e sonhos infinitos. Por fim, calou-se a palavra.
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