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15/01/2019 às 08h51min - Atualizada em 15/01/2019 às 08h51min

Chame-a apenas de Biquara

NANDO LOPES
Dona Antônia não atende quando alguém a chama na rua por este nome. E justifica: “Eu num sou dona de nada, nem de ninguém. Antônia é nome de batismo, minha gente me conhece mesmo por Biquara”, referindo-se ao fato de, desde criança, adorar usar batom. Se você não conhece a Biquara, devo apresentá-la. Ela tem os olhos castanhos amendoados, com tonalidades que nenhuma paleta de cor conseguiu catalogar. Os cabelos escuros, devidamente trançados e cuidados com babosas colhidas do seu quintal, disfarçam os aproximadamente setenta anos vividos. Foram décadas de vida dedicadas a educar uma família de quatro filhos com a máquina de costura que herdou de sua mãe, desde que ficou viúva.

E, assim, Biquara anda pelas ruas da pequena cidade no interior do recôncavo baiano, às margens de um rio que a acompanha desde o dia em que ela nasceu. A caminhada, com passos curtos, é interrompida sempre que um vizinho a cumprimenta e a chama para tomar café e trocar um dedo de prosa. Curioso que, ao entrar nas residências, há sempre alguém que se aproxima de Biquara e toma a benção, o que a deixa confortável. Além dos trabalhos manuais com tecidos e com bordados, ela afirma que ajudou muitas gestantes a lidar com as dores do parto, “curou” muitos umbigos, batizou e olhou garotos que moravam na redondeza enquanto as mães iam trabalhar.

Logo após um garoto se aproximar de Biquara e lhe pedir a benção, um outro adulto também se aproxima e pede que ela prontamente o abençoe. E, assim, a tradição das bênçãos passa de pai para filho, de geração em geração. A quantidade de bênçãos distribuídas por Biquara não para de aumentar, tão pouco os beijos nas testas que ela oferta.

Certo dia, Biquara viu alguém batendo palmas à frente de sua casa. Ela retornava, como de hábito, das suas orações dominicais. Estava a um quarteirão de distância e não reconheceu aquele homem de cabelos grisalhos dentre os moradores da pequena cidade. Quando Biquara se aproximou da residência, o homem já havia entrado no carro e se preparava para partir.

Já no portão, Biquara abriu sua bolsa rapidamente para pegar a chave e entrar antes que o forasteiro a interpelasse. Não era de bom grado falar com desconhecidos. Foi então, que ao ver Biquara parar à frente da residência, o homem desligou o veículo e a interpelou antes mesmo que ela terminasse de destrancar o portão: “Dona Biquara!” disse rapidamente.

Biquara olhou, franziu a testa tentando reconhecer aquele que a chamava como os demais moradores e caminhava em sua direção. Havia passado mais de vinte anos desde a última vez em que ela despedira daquele rapaz que viu nascer e cresceu brincando no quintal da sua casa. Até que, um dia, ele mudou de cidade, como vários moradores, em busca de trabalho e estudo. Ela abençoou a sua partida, como de praxe.

Biquara passou as mãos nos cabelos grisalhos daquele homem que até pouco era apenas um estranho. Após reconhecê-lo, balbuciou: “Menino, o que aconteceu com seus cabelos?”. Soltou um riso alto e provocou risos entre todos os presentes. Então ela beija a testa do seu afilhado e repete o mantra: “Deus te abençoe”.
Naquela manhã, na companhia de amigos, conhecer Antônia foi uma grata surpresa. Dali, ninguém saiu antes de ouvir várias histórias e de ela preparar para o almoço um quibebe de mandioca. Sentada na varanda, ela relembrou as vezes em que os garotos brincavam no quintal da sua casa, subiam nos abacateiros, pulavam corda, enquanto ela, da janela, costurava e avistava se as crianças estavam seguras.

Penso eu, ao ouvir aquelas histórias: quantas Antônias, Marias, Divinas e Clarices não devem existir neste mundo afora? Pessoas que, com zelo, marcam a vida das pessoas ao seu redor. Mas advirto que se quiserem falar com esta baiana que distribui bênçãos por onde passa, convém chamá-la apenas de Biquara. Sem muita cerimônia.
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